Clarice Lispector e as Artes Plásticas – Daniel Tapia
Daniel Tapia. Graduado em Letras (USP) e Psicologia (PC-SP), especialista em Semiótica e Psicanálise (PUC-SP), mestre em Literatura e Crítica Literária (PUC-SP), doutorando no PGEHA (USP). Professor universitário e psicólogo.
***
Clarice Lispector e as Artes Plásticas
O que motivou a renomada autora brasileira nascida na Ucrânia, Clarice Lispector (1920-1977), a enveredar pelas artes plásticas? A esse respeito, levantou-se a hipótese alhures de que a escritora buscava explorar os meandros da alma humana, tocar a matéria viva, pulsante, do ser. Em sua rica obra literária, com efeito, Clarice descontrói a linguagem. E é inegável que sua pintura está inserida nesse processo.
Sua importância para a literatura brasileira é, de igual modo, inquestionável. Mas ainda pouco se sabe sobre seu arraigado interesse pelas artes plásticas e visuais. Os estudos que se detiveram na investigação da relação entre as obras pictóricas que realizou (Fig. 1) e a sua produção literária enfocam prioritariamente a perspectiva literária. Não obstante as reiteradas demonstrações das afetações da imagem em sua escrita poética, bem como o próprio conjunto de pinturas executadas pela autora.
Existem dois trabalhos relevantes que investigam a relação da escritora com o mundo das artes plásticas e visuais. O primeiro é do estudioso Ricardo Iannace, Retratos em Clarice Lispector: literatura, pintura e fotografia (UFMG, 2009), em que o pesquisador aborda vários aspectos da obra literária, das pinturas feitas por ela própria, bem como do acervo pictórico e fotográfico sobre Clarice. O outro trabalho é de Cláudio Mendes Sousa, Clarice Lispector: pinturas (Rocco, 2013), no qual Mendes Souza traça as relações da visualidade em sua exuberante literatura, em especial as repercussões íntimas e quase invisíveis dos traços abstratos de suas telas em sua ficção narrativa. Contudo, em ambas as investigações a literatura permanece como o foco principal. Um aspecto que ganha cada vez mais destaque na análise crítica da escrita clariciana consiste em sua poeticidade sonora. De modo que não se pode deixar de reconhecer que sua obra tem o apelo de transbordar o espaço da página. Por isso, a abordagem comparada dos aspectos verbais com os visuais, as influências de onde tira inspiração para a construção visual, torna-se extremamente pertinente.
Para alguns de seus biógrafos, bem como para aqueles que a conheceram pessoalmente, as numerosas fotografias de Clarice demonstram seu grande apreço pela imagem e pela visualidade. Por sua beleza, foi retratada por vários pintores e fotógrafos. Seu retrato mais famoso (Fig. 2) foi realizado por ninguém menos que o amplamente conhecido pintor greco-italiano Giorgio de Chirico (1888- 1978). A respeito do quadro de Chirico, o crítico Mendes Sousa chama a atenção para o fato de que este foi realizado no período em que ela começa a escrever A Cidade Sitiada (Editora A Noite, 1948). O pesquisador observa que há uma influência notável das artes plásticas nessa obra.
Nos anos de 1960, depois de sua separação com o diplomata Maury Gurgel Valente, Lispector construiu uma casa em que resolveu expressar o gosto refinado pela arte. Nesse período não só da ficção exerceu seu ofício nas letras, também se dedicou a atividade de jornalista. Entre a década de 1960 e 1970, com a finalidade de equilibrar o seu orçamento, fez um considerável número de entrevistas para as diversas revistas da época, entre outras, a Revista Manchete e Fatos e Fotos: Gente. Em 1975, algumas das entrevistas para a Manchete foram publicadas no livro De corpo inteiro. Em 2007, publicou-se Clarice Lispector. Entrevistas, uma coletânea de entrevistas organizadas por Claire Williams, com 19 diálogos inéditos, dentre as quais se podem observar nomes conhecidos ligados às artes plásticas – a escultura, a pintura e ao design. Figuram entre eles Oscar Niemeyer, Bruno Giorgi, Augusto Rodrigues, Maria Martins, Mário Cravo, Carybé, Genaro, Darel, Maria Bonomi e Faya Ostrower.
Com relação aos quadros assinados por Clarice, ao todo são 22 que se encontram preservados. Destes quadros, dezoito estão no acervo da Fundação Casa Rui Barbosa, dezessete são em madeira e somente um em tela. O clariciano, Ricardo Iannace, explica que classificou a técnica empregada de mista, pois foram feitas com óleo, canetas esferográficas e hidrográficas, em algumas foram usados cola líquida e vela derretida. A maioria foi pintada entre março e setembro de 1975. O acervo é composto de mais quatro quadros. Dois em madeira pinho-de-riga, também, encontram-se no Instituto Moreira Sales no Rio de Janeiro. Um deles data de 1960. Existe duas telas ainda que foram presenteadas aos amigos da escritora, Nélida Piñon e Autran Dourado.
Clarice presenteou Nélida Piñon, em homenagem ao romance da amiga, publicado em 1963. Nélida e Clarice conviveram, por 18 anos, de 1959 a 1977, quando ela morre. Nélida não se conteve ao saber que outro quadro que Lispector presentou o Autran Dourado (Fig. 3), iria para leilão (2019). O lance inicial era de R$ 8 mil, mas acabou arrematado por R$ 220 mil. Nesse quadro, Clarice escreveu no verso a Autran: “Você já conheceu, como eu, o desespero. Mas é um erro. Tudo vai dar certo.”
Ainda referente aos quadros, dezesseis foram expostos pela primeira vez, no Rio, no Instituto Moreira Sales (IMS), em setembro de 2009. Os quadros foram emprestados pela Casa de Rui Barbosa, onde se encontra o acervo da escritora. O filho de Clarice, Paulo Valente, também doou ao IMS um conjunto de correspondências e manuscritos, além de duas telas. De 23 de outubro de 2021 a 27 de fevereiro de 2022, houve outra exposição no IMS Paulista dedicada à escritora, Constelação Clarice, na qual foram exibidos todos os seus quadros, tanto do acervo da Fundação Casa Rui Barbosa quanto do IMS Rio.