Confluência dois: “você é um homem ou um rato?”, por Cassiano Figueiredo e Gustavo Rodrigues
mariquinha
você é um homem ou um rato?
um rato!
agora não chora, engole.
engrossa a voz e fala direito!
o rato do desenho animado,
aquele espertinho
capaz de conquistar seu próprio alimento.
o homem
aquele que mata os roedores.
não fala esquerdo
você é um homem ou um rato?
um rato!
tá com medo do escuro?
rato anda no escuro
e se esconde, mariquinha
sai desse closet,
mas antes de sair,
pelos menos, engrossa essa voz
e vê se não anda saltitando
desmunhecando pela calçada
se requebrando todo pra ir à padaria.
no esconde-esconde no quintal
trata de esquecer
quando as mãos buliram
na avidez de um desejo
atrás da bananeira
agora mama aqui e cala a boca
eu sei que você gosta
morreu aqui!
mariquinha, ajeita essa postura
não quebra a mão.
se você não se aprumar,
não ando mais do seu lado.
saiba que
homem que mata anda sozinho,
rato anda em bando
roe as roupas do maldito
mija em sua covardia
e ataca quando preciso.
Rememoro um episódio da minha infância para aguçar minha linguagem poética neste texto. Lembro do terraço da minha tia. Ela morava em um morro. Então, quando anoitecia era um breu. Um breu e a casa entre os matos. Não me recordo exatamente o que ocorreu, mas lembro da sensação. Pediram-me para fazer alguma coisa no andar debaixo, ou eu queria fazer algo lá embaixo. Estava escuro e eu tinha medo.
De forma descontraída, um tio me perguntou: “você é um homem ou um rato?”. Ingenuamente, respondo: um rato! A minha criança entendeu aquela pergunta de forma literal, pois ela não compreendia que a ideia de um rato seria contra o estereótipo heteronormativo e machista. No entanto, minha criança não errou. Ela entendia que sentia medo do escuro, sobretudo que era uma criança e não um homem.
Percebo que, desde a minha infância até os dias atuais, esse discurso ainda é romantizado. Quando minha família cava essa memória, não há um peso de ódio em sua fala. Há risadas, uma vez que o episódio ocorreu de forma descontraída. Entretanto, atualmente, tenho consciência que não devo perpetuar o discurso. Inclusive, hoje, ainda me considero um rato. Sou medroso. Muito pouco corajoso. Assumo minhas fragilidades e não quero ser o “homem”.
No dia 29 de novembro de 2023, minhas memórias e as do Gustavo se entrelaçaram. Houve um diálogo empático entre nós. Tivemos trocas sobre as nossas vivências e como elas, de alguma forma, refletiam na poesia. Cavamos nossas memórias do passado e entramos em um consenso sobre as duas obras, o texto e a pintura.
“Quando fui apresentado ao texto, várias experiências do passado e ideias passaram pela mente. Então, parti de uma lembrança traumática da infância para estabelecer conexões que fizessem sentido para o autor e eu, que conversamos por algum tempo para que essas concepções fizessem sentido para ambos. E realmente fizeram.
O rascunho da imagem já estava pronto no meu sketchbook. Conversamos sobre o texto e o meu rascunho e Cassiano achou que casaria. O texto me trouxe muito a sensação da homofobia internalizada que a comunidade lgbtqiapn+ traz em alguns momentos da vida, reproduzindo padrões heteronormativos e não tendo tantas escolhas para furar a bolha (geralmente por conta de família). Portanto, trago a imagem de um homem que carrega muito ódio e ele não consegue deixar a imagem de uma criatura pequena, refletida no espelho passar. E todo este sentimento é por ele mesmo ser um rato, porém um rato enrustido e tudo o que acontece nos bueiros, no escuro, fica por lá no sigilo. Ele pode ter estado com outros ratos, mas nunca vai assumir.
Para trazer a sensação deste conflito entre a heteronormatividade masculina versus homossexualidade enrustida, optei pela pintura a óleo em tons de verde, contrastando com o tom quente desaturado da pele, remetendo ao psicológico do personagem que se vê parecido com um rato em alguns momentos, mas que não quer ser comparado com um. O revólver, que é um objeto muito agressivo, entra para reforçar essa informação sobre o distanciamento de uma imagem para outra, ou até mesmo associar a uma ameaça.”
Gustavo Rodrigues é formado em Processos Fotográficos pelo Senac – SP e Direção de Arte pela Academia Internacional de Cinema; iniciou na fotografia em 2012 e, hoje, atua como fotógrafo de moda e retratos, interessado em artes, cultura e comportamento. As referências começaram no cinema, inspirado por paletas de cores e cinematografia, e foram atualizadas pelas artes plásticas. Após alguns anos como fotógrafo de estúdio, construiu em paralelo uma carreira com projetos autorais e desenvolveu diversos estudos com tintas a óleo, visando expandir sua linguagem e percepção artística.
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Sobre a coluna Encontro das Águas:
Na coluna mensal encontro das águas, Cassiano Figueiredo busca mergulhar nas suas próprias poesias e nos textos de outros autores. Um espaço em que as águas se avolumam e confluem. Movimento de resfolegar entre as pedras, mas sempre lembrando do gozo que as águas permitem. Fluidez e atravessamentos. Seguir o próprio caminho, mas não anular o desejo de conhecer coisas novas. Enfim, trata-se de uma confluência.
Sobre o colunista:
Cassiano Figueiredo tem 23 anos e é natural de São Gonçalo, município do Rio de Janeiro. Licenciado em Letras Português-Inglês, poeta, professor, preto, gay, omorixá (filho de Orixá), cartomante e canceriano.
Foi publicado em algumas revistas, como Ruído Manifesto, Artes do Multiverso, Ikebana e SerEsta. Além disso, recebeu menção honrosa por participar da coletânea de poesias LGBTQIA+ intitulada “Um rio de Cores”, pela Metanoia Editora.
Atualmente, encontra-se no processo de organização do seu primeiro livro de poemas “Versos tecidos com fios d’água”.