Confluência três: nascente, de Heleine Fernandes
Nascente, da Heleine Fernandes, integra o segundo bloco da coleção a galope, uma parceria entre as editoras Garupa e Kzal. O livro contém dezesseis poesias e foi costurado em máquina de costura. Essa tecedura, para mim, vem com um propósito de aproximação do leitor com o material e o que vai além dele. Um espaço seguro, em que há a sensação de estar em casa. Nesta obra, a autora compartilha suas memórias vinculadas à religiosidade, ancestralidade, família e denúncia social.
Nasce em mim, como leitor, um desejo profundo de mergulhar junto com a autora em cada verso. Ao submergir, as emoções borbulham. Intimamente, percebo que a poesia, na maioria das vezes, é motivada pelas estórias de vida. Em nascente, há uma corrente de água que perpassa as páginas nesse sentido de uma maneira muito intensa. É encantador. Eu sou seduzido a todo momento por essa correnteza.
Sempre fui rodeado de mulheres. Fui criado por mais de uma mãe. Reconheço na minha vida uma forte influência feminina. Quando me deparo com o livro repleto de mulheres, me sinto acolhido. A ancestralidade feminina está visceralmente ligada à obra. Em comer da mão, por exemplo, sou atravessado por uma memória muito afetiva da autora. Se há uma coisa que me cativa na poesia são os sentimentos frágeis, carregados de carinho, afeto, verdade e simplicidade. Se, aqui, há uma memória nítida, tenho a percepção de que se trata de uma memória ancestral negra feminina.
comer da mão
pedia à minha avó
que me desse de comer
e de sua mão brotavam
bolos úmidos deliciosos
que ela chamava capitão.
apertava na palma
os bolinhos de feijão e farinha
temperados e perfumados
pelo calor de seus dedos
de manicure.
suas unhas longas e duras
faziam cócegas
no meu corpo faminto
e a comida se multiplicava.
o alimento vinha junto com o sono
e minha avó sorria satisfeita
como quem me desse os seios
fartos de leite.
A minha voz fica embargada quando os versos partem de um lugar de pertencimento e reconhecimento da própria autora. Heleine denuncia as injustiças que assolam a sociedade brasileira, sobretudo o povo preto. Em especial, a diáspora negra brasileira. É aceso um forte movimento contra o silenciamento e a deslembrança. Os versos rememoram fatos cruéis que ainda refletem na atualidade. Ademais, devo dizer que surge uma voz líquida que vai infiltrando, invadindo e tomando conta do espaço. Ela se mostra presente e ativa. As denúncias não são “águas passadas”, mas ,sim, águas presentes, e todos devem beber dessa fonte.
Acredito que a autora, assim como eu, foi criada por muitas mães. Há uma mãe que nos protege, fortalece e ama desde o útero de nossa outra mãe, porém só temos consciência dessa rede de apoio quando atingimos uma certa maturidade. Em iyá, as águas esfriam o meu ori. Lembro de quem sou filho. Lembro de sua abundância em minha vida, dos seios fartos como as águas desta nascente.
iyá
água prateada,
mastiga os corais
devagar.
põe nos olhos areia
ondula a vista
vendada pela barra macia
de sua camisola.
digere o chão
com a baba doce ácida
de sua mucosa
que quebra e se estende
sobre a cidade.
prolonga no corpo,
senhora,
a dormência de seu leite gelado
regenerativo.
me recolhe
em sua bacia de baleia,
odoyá!
Com o objetivo de aproximar a autora dos leitores, elaborei três perguntas gerais sobre a obra. Não quis direcioná-las às poesias em si, pois busquei pensar no processo de criação do livro para que, assim, os que ainda não leram pudessem despertar a curiosidade, o desejo e um lugar de identificação com a fala da Heleine.
O que motivou nascente?
“Eu já vinha escrevendo a maioria dos poemas que compõem o livro há alguns anos. Comecei a escrever poemas para histórias de família que me intrigavam, em parte para me descolar delas, em parte para homenagear as pessoas que me criaram. Meus familiares são migrantes nordestinos, uma parte importante deles se instalou na Rocinha. Minha vida adulta foi tomando um rumo que foi me afastando de minha família materna, então estes poemas eram uma forma de eu não me esquecer do vínculo com eles, com a história deles. Tudo isso já estava acontecendo, era um projeto de escrita, mas ainda não era um livro. Montei o nascente a partir do convite feito pelo Thadeu C. Santos, que, em parceria com a Juliana Travassos, estava organizando um novo ciclo da coleção a galope, da editora Garupa. A proposta era entregar um livro curto de poemas num prazo pequeno, recebi o convite em janeiro de 2020 e a coleção seria lançada no 1° semestre daquele ano. A pandemia fez o tempo de gestação do livro aumentar, o que foi muito positivo. Nesse meio tempo, houve muitas idas e vindas a partir de diálogos com a Ju e o Thadeu, que foram editores mega cuidadosos e dedicados. Entraram as fotografias antigas de família… e o livro foi crescendo até ser lançado em 2021. Neste período de gestação, o nascente recebeu uma leitura muito importante da Lubi Prates, uma poeta que admiro muito e por quem tenho muito carinho.”
Por que considera esta obra importante?
“Para mim, o livro é importante porque é minha estreia na poesia, é minha forma de nascer como poeta, uma realização imensa como pessoa. Por mais que eu já praticasse a escrita desde a infância, é muito diferente colocar-se socialmente como poeta, fazer os seus textos circularem e perder o monopólio do sentido sobre eles, falar sobre seu ofício… é um rolê muito diferente. Para mim, este salto só foi possível depois de eu descobrir que existia um mundo de poetas negras publicando no Brasil nos estilos mais variados possíveis. Neste sentido, acho que o nascente compõe este cenário da arte produzida por mulheres negras, é mais uma voz contra-hegemônica que desfaz os estereótipos a respeito das pessoas negras. Conceição Evaristo diz que é importante que mulheres negras não só escrevam, mas também publiquem e citem uma as outras. Sem leitores, o texto tem menos poder de intervenção e transformação coletiva, daí essa coragem necessária para lidar com as barreiras colocadas pelo mercado editorial e também pelo racismo, que prevê para mulheres negras atividades relacionadas ao cuidado da casa e dos corpos alheios. A escrita é um exercício intelectual, que alimenta o imaginário coletivo e pode detonar mudanças nos modos de ver, pensar e agir das pessoas. Neste sentido, acho que o nascente contribui ao trazer uma subjetividade marcada por valores, saberes e memória de pessoas negras tantas vezes desumanizadas e subestimadas. É um livro que começa louvando Exú e termina louvando o poder do abebé de Yemanjá.”
Para qual público você destina a obra?
“Não tenho menor controle sobre quem vai ler e se conectar com o livro, mas tenho feito ações para que o livro chegue em pessoas que muitas vezes não têm acesso a livros, não têm o costume de ler ou se sentem intimidadas com a palavra escrita. A performance nascente surgiu deste meu desejo de fazer o livro chegar em pessoas parecidas com a minha mãe, os meus avós, tias e tios. Na performance, faço um ebó em que leio o livro inteiro, do início ao fim. O primeiro lugar em que fiz esta performance foi na feira livre da Teixeira, na Maré. Foi muito especial. Já fiz na Casa das Pretas e também em Madureira. Ainda não fiz na Rocinha, mas é um desejo.”
Heleine Fernandes é poeta, ensaísta, performer e pesquisadora de Poesia Contemporânea Negra-Brasileira. Finalista do prêmio Jabuti, é autora do livro de poemas “nascente” (editora Garupa e Ksa1, 2021) e do livro de ensaio “A poesia negra-feminina de Conceição Evaristo, Lívia Natália e Tatiana Nascimento” (editora Malê, 2020). Realizou performances comissionadas pelo Museu Bispo do Rosário, pelo Galpão Bela Maré e pelo MAM-RIO. É professora e doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem poemas publicados na Antologia Cult#1, na antologia “Ato poético: poemas para a democracia” (editora Oficina Raquel), em “Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras” (editora Bazar do Tempo e FLUP) e em “Versão Brasileira: a voz da mulher” (Teatro da Mente/Retomada Cultural RJ, 2023).
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Sobre a coluna Encontro das Águas:
Na coluna mensal encontro das águas, Cassiano Figueiredo busca mergulhar nas suas próprias poesias e nos textos de outros autores. Um espaço em que as águas se avolumam e confluem. Movimento de resfolegar entre as pedras, mas sempre lembrando do gozo que as águas permitem. Fluidez e atravessamentos. Seguir o próprio caminho, mas não anular o desejo de conhecer coisas novas. Enfim, trata-se de uma confluência.
Sobre o colunista:
Cassiano Figueiredo tem 23 anos e é natural de São Gonçalo, município do Rio de Janeiro. Licenciado em Letras Português-Inglês, poeta, professor, preto, gay, omorixá (filho de Orixá), cartomante e canceriano.
Foi publicado em algumas revistas, como Ruído Manifesto, Artes do Multiverso, Ikebana e SerEsta. Além disso, recebeu menção honrosa por participar da coletânea de poesias LGBTQIA+ intitulada “Um rio de Cores”, pela Metanoia Editora.
Atualmente, encontra-se no processo de organização do seu primeiro livro de poemas “Versos tecidos com fios d’água”.