Copa do Mundo de Filmes: “A Velhice Ilumina o Vento” e “Bendita” (Brasil) – Por Thaísa Soares
A Velhice Ilumina o Vento. Direção: Juliana Segóvia. País de Origem: Brasil, 2022.
Bendita. Direção: Juliana Segóvia. País de Origem: Brasil, 2022.
Das periferias do Brasil, o curta-metragem A Velhice Ilumina o Vento (2022), filme mato-grossense realizado pelo Coletivo de Audiovisual Negro Quariterê, e o documentário Bendita (2022) têm em comum a direção de Juliana Segóvia e também a presença de Benedita Silveira que no curta de ficção estreia como atriz, já premiada em festivais neste ano, interpretando a protagonista Valda. Quando comecei a relembrar a experiência sensível de assistir A velhice ilumina o vento, ao escolhê-lo para essa copa do mundo de filmes, logo acabava lembrando também das cenas de Bendita. A velhice ilumina o vento não foi inspirado em Benedita, mas assistindo aos filmes me parece mesmo que atriz e personagem se encontram. Então, é sobre elas que esse texto vai falar.
Acompanhar o cotidiano de Valda emociona e faz sorrir. A velhice ilumina a personagem que está sempre cantando e sorrindo. As cenas apresentam a dureza de seus dias no trabalho como empregada doméstica, a reprovação do filho sobre seu modo de viver, as horas no ônibus e o baile. Ah, o baile! Valda convida para ir ao baile, para dançar, e dá mesmo vontade de acompanhar essa mulher, de ser amiga dela, de aprender algo com ela, aprender sobre isso de se olhar no espelho como quem encara a si e a vida: “levo meu rumo na minha mão”.
Em Bendita, conhecemos frames do cotidiano que nos apresenta uma mulher que se revela extraordinária – me aproximando e concordando com as palavras da sinopse. Benedita se apresenta ao tempo que as cenas que ela mesma narra nos apresentam sua família, seus vizinhos, seus amigos, seu bairro, sua comunidade, sua participação nos movimentos comunitários e na vida política, sua casa, seu quintal. Naquela que achei a cena mais linda, a vemos refletida no espelho enquanto escutamos sua voz off, a falar de sua história de vida e relação com a idade, as mudanças no corpo e o processo de envelhecer: “Eu me amo assim e vou ficar assim! Ninguém bota nada artificial no meu corpo.”
A poesia dos filmes é tocante, nas cenas, na história, no modo de nos apresentar um olhar sobre a velhice a partir dos olhares de Valda e Benedita diante do espelho. Os filmes me tocam pessoalmente também pelo convite a desviar nosso olhar dos modos padronizados de entender a vida como etapas definidas pela idade, e que teriam a velhice como decadência final para a morte, para quiçá vê-la como parte da vida e seu curso como processo.
A maneira como se concebe e vive o envelhecimento varia social, cultural e historicamente, assim como a periodização da vida e o entendimento de práticas adequadas a cada período passam por tais variáveis, de forma que pode também se voltar a atender a interesses políticos e econômicos (DEBERT, 1997; DEBERT, 2004). Podemos entender também que envelhecer é um processo que nos acompanha por toda a vida, apresenta-nos perdas e ganhos e as vivências de cada sujeito contribuem para o modo como a velhice será concebida por cada um de nós (RABELO et al. 2018).
Pensar a velhice como fim da vida, de ordem familiar privada, de despedida e fragilidade é tão problemático quanto uma romantização que lhe confere uma ideia de realizações e autonomia, reservado para ser aproveitado apenas para aqueles que souberam poupar recursos, se manter saudáveis e “mentalmente” jovens, reforçando a noção de juventude como valor – que interessa à criação de mercados de consumo (DEBERT, 2010). Fundamental acrescentar que essas problemáticas reduções excluem considerações das intersecções entre raça, classe e gênero que permitem evidenciar os efeitos do racismo sobre o envelhecimento da população negra e o fato de que em nosso país são a minoria da população idosa.
Sem esse recorte, facilmente podemos assistir aos filmes e pensar que o que permite a essas mulheres se encarar no espelho e gostarem do que veem é sua autoestima, e que bastaria um olhar otimista para não se render às agruras da vida. Mas, quero desafiar também esses olhares individualistas e defender que o que constitui essas mulheres e seus modos de viver o envelhecimento é sua comunidade.
São diversos os efeitos psicossociais do racismo sobre o envelhecimento da população negra, em que pesem as condições socioeconômicas, iniquidades em saúde, demandas familiares, violências. E somos informadas por Rabelo et al (2018) que no enfrentamento às condições de vulnerabilidade a que estão expostas, as mulheres negras se apoiam efetivamente em suas experiências coletivas transgeracionais.
“A transmissão psíquica transgeracional dos laços de coesão entre mulheres negras, da rede de suporte social e os movimentos de resistência na superação do racismo contribuem para a construção de uma identidade coletiva positiva e afirmativa”.
A existência desses laços, que lhes confere redes de pertencimento, comunidade, território, aliadas às suas trajetórias se relacionam aos processos subjetivos e a constituição de recursos psíquicos que podemos entender como “resiliência a autoconfiança, pertencimento, bom relacionamento familiar/social, suporte social e autonomia” (RABELO et al 2018)
A existência de referências culturais que atravessam gerações de matriarcas, a transmissão da sabedoria das mais velhas, sua posição ativa nas dinâmicas familiares permite a partilha de referências positivas associadas ao envelhecimento e que nos parece constituir as experiências subjetivas de Valda e Benedita, como mulheres idosas negras.
É dançando em comunidade que Valda pode responder: “Eu, sozinha? nunca! Eu tenho a mim mesma.”. É a partir de seus vínculos com a família, vizinhos e amigos que Benedita pode dizer: “a felicidade pra mim é você estar bem com você e as pessoas”. Duas mulheres que sustentadas em sua ancestralidade encaram o espelho e a vida de frente e gostam do que veem, afirmam sua história de vida e seus processos, afirmam as escolhas que puderam fazer, seus modos de viver desejantes, afirmam o amor e os afetos, afirmam pertencer a si mesmas, pois pertencem à uma comunidade que as antecede.
Referências Bibliográficas
DEBERT, Guita Grin. A Reinvenção da Velhice: Socialização e Processos de Reprivatização
do Envelhecimento. Universidade de São Paulo: FAPESP, 2004.
______. A invenção da terceira idade e a rearticulação de formas de consumo e demandas
políticas. RBCS – Revista Brasileira de Ciências Sociais, v 12, n.34, p.39-56, 1997.
______. A dissolução da vida adulta e a juventude como valor. Horizontes Antropológicos,
ano 16, n.34, p.49-70, jul./dez. 2010.
Rabelo, Dóris Firmino, Josevânia da Silva, Nara Maria Forte Diogo Rocha, Hiago Veras Gomes, and Ludgleydson Fernandes de Araújo. “Racismo e envelhecimento da população negra.” Revista Kairós-Gerontologia 21, no. 3 (2018): 193-215.
Onde assistir
A velhice ilumina o vento: Ainda não disponível em serviços de streaming.
Bendita: YouTube.
* Thaísa Soares tem atuações como psicóloga, professora e atriz. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso campus Cuiabá /UFMT-Cuiabá. É multiplicadora de Teatro do Oprimido e se interessa pelas intersecções entre as linguagens artísticas e a escuta clínica como potencializadoras de modos de vida mais criativos e de mundos possíveis.