Copa do Mundo de Filmes: “O Enredo de Aristóteles” (Camarões) – Marco Aurélio da Conceição Correa
O Enredo de Aristóteles. Direção: Jean-Pierre Bekolo. País de Origem: Camarões, 1996.
O Enredo de Aristóteles é uma homenagem ao cinema africado feita pelo cineasta camaronês Jean-Pierre Bekolo. Convidado pela British Film Institute para participar de uma coletânea de filmes que celebraria os cem anos do cinema, Bekolo brinca com os dilemas da história da cinematografia africana. Logo nos primeiros minutos de filme nos deparamos com a sagacidade do autor quando os dois personagens principais são parados por um policial, de um lado temos um aficionado por cinema que por ter assistido mais de dez mil filmes se autointitula Cinema, com letra maiúscula; do outro lado temos Essomba Touneur, ET, para os mais íntimos, uma espécie de alter ego de Bekolo que se intitula como Cineasta, filmaker e realizador.
Cinema lidera uma gangue formada por personagens apelidados com nomes de estrelas de Hollywood, Van Damme, Schwarzenegger, Bruce Lee e Nikita, bem no estilo do controverso clássico Moi, um noir (1959) de Oumarou Ganda e Jean Rouch. O bando passa o dia inteiro zoando e assistindo os últimos lançamentos de filmes de ação no Cinema África, sala de exibição local dominada pela gangue. ET, recém regresso de seus estudos em cinema em Paris, se indigna com a suposta alienação da gangue de Cinema que por volta chacota da pompa do Cineasta ao chamá-lo de silly ass, algo como bundão. ET respaldado pelo governo, que assim como Bekolo na vida real, similar ao Bye Bye Africa (1999) de Mahamat Saleh Haroun, é convocado a contribuir com o cinema do país. Para resolver o impasse, o Cineasta busca a polícia com um mandato do ministério da cultura para expulsar o Cinema e sua gangue hollywoodiana do cinema África e consegue.
Ironicamente, o estado representado pela polícia busca entender porque atores mortos em um filme aparecem vivos em outros. É o mote que funda a parceria de Cineasta com o governo e o pano de fundo para um dos mais belos comentários em over de Bekolo que permeiam todo o filme: “Por que não temos uma Hollywood Africana? Provavelmente porque não queremos produzir nosso cinema, fora da vida. Porque quando está fora da vida, está morto. Como um parto de risco. Quem você escolheria? A mãe ou a criança? A vida ou o cinema? Porque quando o cinema se torna a sua vida, você está morto. O cinema está morto. Estamos todos mortos.” ET assim se torna um vigilante, um exterminador daquilo que não é africano, tentando manter viva uma África que sofre pela asfixia do exterior, mesmo sem conversar com a própria que ares ela pretende respirar.
O filme de Bekolo não é apenas uma ode metalinguística ao cinema africano, por ter o cinema como pano de fundo para sua trama principal de seu roteiro ele faz sequentes alusões aos pioneiros africanos. Desde as identificações falsas usadas por Cinema no começo do filme, homenageando nomes como Djibril Diop Mambéty, Ousmane Sembène, Med Hondo e Souleymane Cissé, mas também por usar a acidez característica destes primeiros cineastas. Até ao brincar quando afirma que os cineastas africanos ou são jovens emergentes em aprimoração ou do nada se tornam anciões pioneiros, não há um meio termo para o cinema da África. Bekolo torna isso evidente no satírico duelo entre o moderno e o tradicional ao evocar filmes como O retorno de um aventureiro (1966) de Moustapha Alassane que encena o regresso de um africano aficionado por westerns instaurando o caos em sua aldeia.
A ironia de Bekolo é presente quando, insatisfeitos, os gangsters armam um contra golpe a ET ao fugirem para as áreas rurais e começarem a exibir filmes africanos. O desfecho desse complexo enredo se dá quando a gangue de Cinema cansa de exibir filmes africanos no campo, sobretudo quando os locais do suposto Cinema Africano, em letras maiúscula, em dizeres como, “quando se vê um africano você já viu todos os outros”. Num embate final digno de um cruzo entre a nouvelle vague francesa e os bang bang dos faroestes numa África pós-colonial, ET e Cinema e sua gangue trocam tiros, socos e pontapés até morrer. Em nome do enredo de Aristóteles e da sátira metalinguística, Bekolo decide reviver seus personagens algumas vezes dando o final aberto e ambíguo que o filme merecia. No final, não há um lado vencedor, quem ganha é o espectador por assistir um filme esperto sem pedantismos e inovador sem perder o tino.
Onde assistir: Não disponível em serviços de streaming.
* Marco Aurélio da Conceição Correa é pedagogo, escritor e pesquisador. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro, mestre em educação (ProPed-UERJ) e pós-graduado em Ensino de História da África (PROPGPEC-CP2). Autor dos livros Cinemas afro-atlânticos e Necropoéticas e outras histórias.