Copa do Mundo de Filmes: “O Homem que Vendeu Sua Pele” (Tunísia) – Por Wuldson Marcelo
O Homem que Vendeu Sua Pele. Direção: Kaouther Ben Hania. País de Origem: Tunísia / França / Bélgica / Suécia / Alemanha, 2020.
Indicado ao Oscar 2021 de Filme Internacional pela Tunísia (e primeiro da história do país a chegar entre os cinco finalistas), O Homem que Vendeu Sua Pele é inspirado em uma história real. Um tatuador de Zurique, Tim Steiner, em 2006, aceitou a proposta de ser uma “tela humana” e ter as suas costas tatuadas pelo artista belga Wim Delvoye, que fez fama ao tatuar a pele de porcos. A obra “TIM” é exibida em museus, galerias ao redor do mundo. Em 2008, a tela em movimento foi vendida para o colecionador de arte alemão Rik Reinking pela bagatela de 150 mil euros.
A diretora Kaouther Ben Hania, uma documentarista de sucesso, em seu segundo longa-metragem de ficção – o seu filme de estreia A Bela e os Cães é uma intrigante e ousada crítica à burocracia e à misoginia que ainda imperam na Tunísia pós-revolução de Jasmin (2010-2011), manifestações insurrecionais que abriram caminho para a Primavera Árabe –, conta a história de um refugiado sírio que vende suas costas para um artista europeu, no intuito de obter um passaporte e viajar para Bruxelas, na Bélgica, a fim de encontrar a ex-namorada, agora casada com um diplomata.
Ao tratar da mercantilização de um ser humano, Ben Hania tem como pano de fundo uma história de amor. Sam (Yahya Mahayni) topa se tornar uma obra de arte viva por desespero, pela falta de escolha, pela necessidade premente de estar diante da amada Abeer (Dea Liane).
O artista conceitual Jeffrey Godefroi (Koen De Bouw), que é um misto de cinismo, presunção e desapontamento, tatua na pele de Sam um visto Schengen, que é necessário para estrangeiros ingressar na Europa. Um símbolo de liberdade para um refugiado, mas que cria para o sírio um contrato de restrição a sua liberdade individual, sendo obrigado a estar em exposições e mostras determinadas pelo documento que assina na negociação. Deste modo, Sam é arte e é mercadoria, podendo ir a leilão e ser observado em galerias, para a curiosidade e deslumbre do público.
Antes de ter o consumismo e o elitismo como um dos focos para a análise da cultura contemporânea, o filme se inicia com Sam e Abeer em um trem e o que se desencadeia nesta sequência traz o tema e a estética que sustentam a película de Kaouther Ben Hania. Tomado pelo entusiasmo do amor, o homem fala em revolução e liberdade, reivindicando o direito de declarar sua paixão sem medo, porém se referindo às proibições sociais ditadas pelos costumes. Isso basta para que Sam seja implicado politicamente e detido pelas autoridades do governo de Bashar al-Assad. A liberdade é um bem frágil em regimes ditatoriais. O jovem cruza a fronteira para o Líbano e chega a Beirute, capital do país.
Em relação à estética, a cena do trem antecipa a visualidade da película, pois tem enquadramentos que aludem a pinturas e o filme todo é repleto de espaços delimitados, apertados que dialogam com o formato de obras pictóricas – mesmo telas de computador ou espelhos. O Homem que Vendeu Sua Pele é de uma plasticidade impecável.
Em Beirute, Sam tem um trabalho mecanizado em um frigorifico de aves, selecionando pintinhos “adequados” provavelmente para a produção de ração. À noite, invade vernissages com um amigo para comer o que é servido pelos buffets. Em uma dessas aventuras como penetra que Sam é interpelado por Soraya (Monica Bellucci), que gerencia a carreira de Jeffrey. A partir daí, começam o dilema e a via-crúcis de Sam.
Jeffrey é uma sensação no mundo da arte por tornar objetos comuns e banalidades em obras de arte. Suas criações são vendidas por milhares de euros. E transformar o corpo, um parte do corpo do Outro em uma “tela”, parece fazer parte do desafio do artista. Situação que enseja o debate ético sobre os limites da arte, principalmente por envolver um homem refugiado. Exploração e oportunismo ou poder de decisão e liberdade?
Sam passa a ser um corpo vigiado, sempre seguido por seguranças e conduzido por funcionários dos museus. Tempo para pausas e interação com o público também estão no bojo das interdições. Afinal, Sam Ali é uma mercadoria. A liberdade também é um bem frágil em países capitalistas se você não é um dos privilegiados.
Jeffrey diz que se sente mais como Mefistófeles no acordo com Sam do que um gênio da lâmpada no que tange a conceder desejos. É o pleno exercício da liberdade ou é tão somente vender a alma para aceitar grilhões em um mundo exclusivo, de suposta sensibilidade e lucrativo? O mundo que Jeffrey critica com sua arte-mercadoria é a mesma que o geógrafo Milton Santos aponta em sua tese, a de que há uma livre circulação de mercadorias e informações que está em contraste com o impedimento da circulação dos indivíduos, especialmente imigrantes, que buscam emprego e direitos básicos, enfim, uma vida melhor.
Conforme Milton Santos, o consumismo é o maior dos fundamentalismos. E o mundo da arte ilustra a crítica de Kaouther Ben Hania ao capitalismo. Dizem que as maiores loucuras se faz por amor ou por dinheiro, e ambos são ausência ou excesso no circuito que se percorre pelas galerias de arte e leilões da diretora tunisiana. Nesse ambiente elitizado, temos o “estar ali” e o “ter” como responsáveis pelo contato com as obras e a apreciação artística ficando em segundo plano. Há uma ausência de paixão e um excesso de valoração, que distorcem e inflacionam o mercado – ou o valor artístico das obras?
A situação leva a reflexão sobre a identidade humana. Sam é um fugitivo das autoridades sírias – o drama da guerra na Síria é apresentado em momentos pontuais – o que o torna um imigrante, um refugiado. Ao aceitar a proposta de Jeffrey, Sam inicia um processo de desumanização, de perda da dignidade. No entanto, nunca completo pela resistência da própria “mercadoria”, que é um homem sensível, impulsivo, de personalidade forte. Ele quer sua liberdade de volta, resolver o paradoxo em que está metido, que é, retomando Milton Santos, a valorização do objeto sobre a pessoa. Sam é muito mais que um corpo-tela.
Se tratando de corpo, a atuação de Yahya Mahayni traz muito significados, revelando sentimentos como angústia e paixão, além do peso do tratamento que recebe pela sua reificação. Nele, em sua linguagem corporal – seus gestos, movimentos e silêncios –, a proposta do paralelo entre a crise dos refugiados e a crise da arte contemporânea ganha dimensões surpreendentes. Não à toa, Mahayni foi laureado em Veneza pelo seu desempenho emocionante e profundo.
Vale destacar a cinematografia de Christopher Aoun, que, muita atenciosa às cores, é elegante e confere o apuro estético a atmosfera da obra. E a trilha sonora de Amin Bouhafa, com sintetizadores e cordas, contribui de maneira significativa para as situações e relacionando-se com os espaços.
Kaouther Ben Hania se arrisca em seu conteúdo, como A bela e os cães é um desafio à forma. Sua sátira é profundamente humana, conduzindo a uma reflexão de como liberdade é um termo ampliado e restringido conforme os interesses do capital (e de regimes ditatoriais), restando-nos o desejo de ser livre e um senso de dignidade como resistência.
Onde assistir: Globoplay