Copa do Mundo de Filmes: “O Santo Desconhecido” (Marrocos) – Por Wuldson Marcelo
O Santo Desconhecido. Direção: Alaa Eddine Aljem. País de Origem: Marrocos, França, Catar, 2019.
O longa-metragem de estreia do diretor e roteirista Alaa Eddine Aljem mostra um pequeno vilarejo no deserto marroquino em que fé, ironia, hipocrisia e pertencimento estão a serviço de uma comédia dramática com influência dos irmãos Ethan e Joel Coen – humor peculiar, estranheza das personagens e caricatura – e do cineasta palestino Elia Suleiman – em relação à irreverência que expande a seriedade dos temas abordados. Referências que confere a O Santo Desconhecido um tom sarcástico, que alia o absurdo ao que há de ridículo na vida. No entanto, Aljem não pretende satirizar a religião ou religiões, mas revelar como um sistema de crenças está muitas vezes afastado da razoabilidade.
Após um roubo a banco, Amine (Younes Bouab), um ladrão, enterra o dinheiro em uma colina. Para supostamente tornar mais seguro o buraco, transforma-o em uma sepultura. Depois de cumprir pena, ele retorna ao deserto e descobre que o local é um santuário dedicado a um Santo Desconhecido. Com a peregrinação dos fiéis, fica praticamente impossível para o ladrão recuperar o produto do assalto. Ele, então, decidi se estabelecer na cidade, sendo logo confundido com um cientista.
Enquanto Amine planeja o saque ao santuário, conhecemos outros personagens da vila: o médico recém-chegado (Anas El Baz) e o enfermeiro (Hasan Badidah) que já está tempo demais na região, o guarda do santuário (Abdelghani Kitab), que também é proprietário de ovelhas, que tem mais afeto pelo cão que pelo próprio filho, e Brahim (Mohammed Nouaimane) e o filho Hassan (Bouchaib Semmak), que residem na cidade vizinha castigada pela seca, sem chuva há 10 anos, cujos moradores se mudaram para a cidade do “santo desconhecido”. Brahim, entre todas as personagens, representa à dedicação ao território, ao lugar, a fé as raízes e a propriedade. Contudo, na mesma medida, ilustra a teimosia e o apego a uma ideia fixa, que atormenta o filho com a ilusão da possibilidade de preservar uma terra incultivável pela falta de água.
O que fazer em um lugar tão seco quanto a sua paisagem? O médico logo conhece a monotonia de um trabalho repetitivo e sem desafios, já que a população prefere tentar a cura no santuário. O entusiasmo inicial cede espaço para o tédio, restando a ele atender as mulheres que procuram a clínica para se distraírem ou pregar peças na comunidade para zombar de sua credulidade.
O vigia do santuário maltrata o filho enquanto tem no cachorro um fiel companheiro. Aliás, é o cão e seu dono os principais obstáculos para o assaltante obter êxito em seu propósito de ter em mãos novamente a grana.
Os ladrões – são dois, pois Amine convoca um comparsa, Ahmed ((Salah Bensalah), que esteve preso com ele, conhecido como Cérebro (um chiste não compreendido pelo criminoso) – começam a se sentir mal em saquear o santuário, flertando com a dúvida se não encontrarão a ossada de um homem realmente santo.
Essa galeria de personagens inusitadas constrói a farsa com um humor sutil, sem escrachos e criticando não a religião, mas como as pessoas são instáveis, fúteis e mesmo sinceras, gerando uma zona cinzenta entre superstição e fé.
A crítica, meio-ácida, meio-condescendente de Alaa Eddine Aljem reserva momentos inteligente, de humor e ironia, como quando o vigia que, após o atropelamento e consequente perda dos dentes de seu cão, decidi colocar dentes de ouro no animal, o que o obriga, pela paranoia, a tornar o amigo canino um bem a ser protegido, velando-o todas as noites. Ou quando o filho em homenagem ao pai morto cria um mausoléu e o tornar um santo conhecido, com nome.
O diretor de fotografia Amine Berrada extrai beleza do deserto, mas destaca também a aridez de um lugar que é poeira e pedras, dialogando com a esterilidade do contexto social – ainda que a vila seja próspera por conta do santuário. Já a montadora Lilian Corbeille é precisa no tempo cômico, com piadas que não se estendem em demasia e nem são abreviadas.
O Santo Desconhecido mostra o patético que há na fé ao mesmo tempo que preserva a sua relevância e o seu poder. Nessa ambivalência (que traz uma inevitável sensação de ausência de ousadia), o cineasta marroquino opta pela simplicidade e por gerar menos situações caóticas e enganos em relação à trama, diferentemente de suas referências mais flagrantes. Porém, essa parábola, apesar de alguma previsibilidade, mostra de modo burlesco (com uma dose de comedimento) os efeitos da insensatez humana, que podem ser resultantes do crime, da fé exacerbada ou do conformismo engendrado pelo enfado.
Onde assistir: Não disponível em serviços de streaming.