Copa do Mundo – “O Silêncio do Céu” (Brasil) – Por Thereza Helena
O Silêncio do Céu. Direção: Marco Dutra. País de Origem: Brasil, Uruguai, 2016.
Primeira tomada: Céu azul com nuvens carregadas, levemente iluminadas por um dourado- luz de sol.
Corta para: Rosto agigantado num close. Pescoço bronzeado, olhos arregalados, cabelos desgrenhados. É um rosto de mulher. Ela está deitada. A cama é sua, a casa é sua. Uma mão lhe tapa a boca. A mão não é sua. A mão é de um homem. Um homem que a empurra contra a cama e com uma faca ameaça cortar-lhe pescoço. A faca é do homem, do estuprador.
Já na sequência inicial, Sérgio Bizzio e Lúcia Puenzo, roteiristas de O Silêncio do Céu dão a ver a violência sofrida por Diana, personagem interpretada por Carolina Dieckmann. Ela é abusada sexualmente em sua própria casa e, como muitas outras vítimas, mantém esse sofrimento em silêncio, sem contar para ninguém, nem para as autoridades, nem para Mário, seu marido. Esse silêncio, aos poucos, corrói a ela própria e junto todas as suas relações.
Quanto a isso, a expressão que a mim melhor se apresenta no que diz respeito à trama dessa produção brasileiro-uruguaia é a do elefante branco no meio da sala. A sala é de Diana e Mário, casal que, após dois anos de separação, reatou a pouco o relacionamento de quase oito. O Elefante, Diana tenta esconder do marido ao continuar realizando todos os afazeres diários como se nada tivesse lhe acontecido. Talvez numa tentativa de que, com a rotina maçante, o elefante também se enjoasse e fosse embora. Mas ele não vai. E no fim do dia, quando Diana fecha os olhos, ele a interrompe com pesadelos assustadores, nos quais ela tem seu vestido arrancado à força.
E, na outra noite, ele aparece de novo. Acordando-a num susto com a memória do crime, da qual tenta se livrar tomando banhos seguidos no meio da madrugada. Enquanto Diana leva seus dois filhos para escola e num momento de branco fica paralisada, o branco é do elefante. É ele também quando no trabalho ela não consegue mais terminar os desenhos para o desfile de sua nova coleção. E o elefante está lá mais uma vez, quando tenta comer e quase vomita só de pensar no que lhe passou. E quando qualquer carro amarelo se aproxima, invadindo-a de medo por temer ser o veículo que leva o abusador, quem dirige é o elefante. E esse elefante nunca irá embora enquanto seu nome não for dito com todas as letras: ES-TU-PRO! Crime definindo pelo artigo 213 do código penal.
Embora se trate de uma ficção, eu, como mulher, não consigo assistir a obra sem fazer uma relação direta entre os mais de 130 mil casos de estupro registrados no Brasil e no Uruguai em 2016, ano de gravação do longa. Porque eu não consigo ignorar o fato de que, assim como Diana, outras vítimas não terão denunciado os agressores? Quantas outras mulheres, por vergonha, medo, sensação de culpa, com seu silêncio, não terão sem querer contribuído para que cerca de 80% dos estupradores fiquem impunes? Quantas outras não terão condições de ver os criminosos em retenção de 6 a 10 anos? Quantas outras não conseguirão exigir o cumprimento do artigo 213 do código penal?
Esses números, eu desconheço. Porém, o relógio da violência sexual contra a mulher não para. E nos 2 minutos que você levou para ler este texto, pelo menos 30 de nós foram violentadas na América Latina.
* Thereza Helena é atriz, performer, diretora membro fundador do Encontro Levante Em cena e Núcleo produtivo Parágrafo Cerrado. No âmbito acadêmico, pesquisa a potência da criação autoral latino-americana. Seus trabalhos participaram de festivais nacionais como o Sesc Cariri de Culturas, Amazônia das Artes, além de apresentações internacionais como Apontamentos: memórias em percurso, realizado na Colômbia, Pachamama concebido no Peru. Atualmente circula com o espetáculo INhamor.