Davi Boaventura – “Caminhos teóricos na construção da personagem: o que dizem os escritores?” – PUCRS
O grupo de pesquisa “Teoria da escrita criativa: uma interface operacional com a teoria literária”, coordenado pelos professores doutores Luiz Antonio de Assis Brasil e Bernardo Bueno no Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) apresenta nesta série dez entrevistas para compor o artigo “Caminhos teóricos na construção da personagem: o que dizem os escritores?”, de autoria dos organizadores, mais Gabriela Ewald Richinitti, María Elena Morán Atencio, Maria Williane da Rocha Souto, Marina Soares Nogara, Marina Solé Pagot e Stéfanie Garcia Medeiros.
O terceiro entrevistado é Davi Boaventura. Doutor em Escrita Criativa pela PUCRS e jornalista pela FACOM/UFBA, Davi Boaventura é autor de “Talvez não tenha criança no céu” e “Mônica vai jantar”, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. Tem contos em antologias, coletâneas e revistas literárias. Também estuda fotografia e trabalha com edição e revisão de texto. Nasceu em Salvador, em 1986.
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O que nasce primeiro: a história ou a personagem? Explique.
Para mim, na verdade, o que nasce primeiro é sempre o sentimento, aquela sensação meio abstrata com a qual quero impregnar o texto, e depois tento encontrar a personagem e a situação que me dê liberdade para trabalhar aquele sentimento dentro de um espaço narrativo mais livre. Aí, neste momento, não imponho muito uma hierarquia, o personagem e a história tentam se encaixar, e uma coisa influencia mutuamente a outra, em dialética, uma relação sempre pautada pela premissa ser ali uma figura moral em ação.
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Você sente que domina suas personagens ou considera que elas adquirem algum grau de autonomia ao longo da sua escrita? Explique.
Sempre considerei essa coisa do personagem dominar a escrita uma ideia exageradamente romântica e não consigo levar muito a sério a não ser como estratégia discursiva para livrar a pessoa de explicações. É claro que, quando você estabelece as bases de certa personagem, ela pressupõe um determinado grau de coerência, onde até as incoerências respondem a esse arcabouço, o que, inclusive, aprendi nas aulas do Assis, mas eu vejo o texto como uma interseção entre as vontades da pessoa que escreve, a materialidade das palavras e os sentimentos, então não vejo muito em termos de “domínio”.
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Quais métodos ou ferramentas você utiliza para a criação de suas personagens (pesquisa, biografia, fichamento, cartas, desenhos, observações…)? Com que profundidade você precisa conhecê-las?
O método do caos, hahaha. Na verdade, não sou muito de fichamentos e notas, eu vou acumulando as coisas dentro da cabeça até sentir que sei o mínimo possível para conseguir começar a escrever. Depois, como eu gosto muito de revisar e revisar, eu vou desenvolvendo as camadas da personagem e apagando e enxertando até entender que aquela figura se tornou uma presença viva (ou até eu não aguentar mais trabalhar com ela, às vezes acontece, paciência).
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Você costuma usar ou reger-se por algum insumo teórico antes ou durante a construção de suas personagens?
Não de maneira consciente e esquematizada, mas com certeza existe uma influência dos estudos teóricos ao longo dos anos, principalmente dos conceitos de estidade, que James Wood discute, e de punctum, que Barthes traz – até por certo caráter intercambiável entre esses conceitos, no final das contas -, na medida em que eles conseguiram me arrancar da prisão de ser obrigado a construir personagens “redondos”, e sim personagens mais tortos mesmo, o que a gente conhece sobre eles é o que precisa conhecer e apenas pressente o resto.
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Você costuma se inspirar em pessoas reais para escrever suas personagens? Como é esse processo de converter alguém em ficção?
Em alguma medida, começo pensando em personagens reais e depois abandono a ideia ao escrever e perceber que a pessoa real era mais um estímulo à vontade do que propriamente uma necessidade narrativa. Agora, no entanto, estou começando a escrever um livro que parte de uma questão autobiográfica e sinto mais dificuldade nesse descolar. Talvez seja por ser ainda o início do trabalho e mais adiante a coisa se desenrole dentro do espaço literário.
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Você destacaria alguma personagem que teve importância fundamental na sua escrita? Como sua rotina de criação e suas leituras influenciam a construção de suas personagens?
Eu acredito muito fortemente que, para além das leituras, nós vamos encontrar influências em todo tipo de produto cultural e em todo tipo de experiência, desde que elaboremos em cima daquela experiência e não seja somente uma “passagem”, é talvez uma questão de ginga – e o tropicalismo trabalha esse ser esponja com uma intensidade que sempre me encanta. Em termos literários, Molly Bloom é uma influência muito forte. Mas talvez o movimento que mais me impulsiona para querer escrever e de fato tratar a escrita como um material modulável é talvez uma combinação de Caetano Veloso, música punk e cinema.
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(Fotografia de Flor Reis [detalhe]).