De um a outro vértice qualquer – Por Luiz Renato de Souza Pinto
Quando dizemos que uma pessoa, ou uma coisa, não tem valor algum, dizemos que não vale um pequi roído, certo? Nesta coluna literária, os textos se debruçarão sobre aspectos constitutivos de narrativas, sem que os juízos de valor se sobreponham à experiência da escrita. Não escrevo sobre todos os livros que gosto, mas sobre os quais me considero apto a dialogar com minha própria história e capacidade leitora. Aqui todos valem, se não o que pesam, mas o que representam para mim neste mundo em que distopia passou a ser apenas mais um eufemismo (e não é de literatura que estou falando).
Luiz Renato de Souza Pinto. Graduado em Letras-Literatura (UFMT), atua na docência desde 1998; Mestrado em História (UFMT) e o Doutorado em Leras (UNESP). Atualmente trabalha com Ensino Médio e Superior (Graduação e Pós-Graduação) no IFMT. Desenvolve oficinas de Escrita Criativa (em verso e prosa); Poesia e Filosofia; Letra e Imagem; Narrativas Curtas; Estruturas de Romance; Literatura e Outras Artes. Possui três romances publicados: Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Xibio (2018), Cardápio Poético (1993) e Gênero, Número, Graal (2017) livros de poemas. Autor também de Duplo Sentido (contos e crônicas), A filha da Outra (2020) – novela; Cabeça, Tronco, Membros – ensaios sobre os caminhos da palavra (2021) – ensaios; A gaveta, o lápis, o papel (2022) – novela; e O que é do boi homem não lambe (2023) – poemas. Reflete acerca da construção de personagens, enredos, espaços e tempos, mas, sobretudo, sobre a posição do foco narrativo, os olhares sobre as personagens e as coisas, o entorno.
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De um a outro vértice qualquer
Meu Brasil está numa encruzilhada. É a própria. Quem vem da direita e quem vem da esquerda acabam sempre se pechando no mesmo lugar (Moreira, 2019, p. 69).
O fenômeno da conurbação é mais comum do que a gente imagina, mas eu só me lembro de ter dado conta de sua existência quando morei na cidade de Barra do Garças, aqui no Mato Grosso, faixa territorial contígua à de Pontal do Araguaia, também no estado e a cidade de Aragarças, em Goiás. Sá o três municípios atravessados por duas pontes, uma sobre o majestoso Araguaia e a outra sobre o Rio Garças.
Depois disso percebei que a cidade em que moro, Cuiabá, também partilha do mesmo conceito, uma vez que o rio homônimo divide os municípios de Cuiabá e Várzea Grande. Esse conceito importante da geografia urbana tem aplicação, portanto, em inúmeras regiões em que municípios limítrofes dividem um conjunto de bens materiais e imateriais na formatação de uma identidade cultural.
União da Vitória (PR) e Porto União (SC) é outro desses encontros, mas com a particularidade que, historicamente, celebram um evento extraordinário desse Brasil “moderno” que atende ao nome de Guerra do Contestado, evento bélico de proporções equivalentes ao massacre de Canudos, ocorrido entre os anos de 1912 a 1916.
Pela segunda vez em minha vida estive na região. Dentre as várias pessoas com as quais partilhei essa estadia está o escritor e professor universitário Caio Moreira, autor de, por exemplo, “Oriki daqui” e “Esquinas”, livros que me foram presenteados pelo autor na oportunidade. Mas o que seriam esses oriki, de que nunca tinha ouvido falar? “Os poemas de Oriki daqui são textos-oferenda” (Moreira, 2019, p. 10).
Curiosamente entrei no mundo de um poeta-escritor-professor que manipula com esmero e cuidado a língua portuguesa, esculpindo na pedra bruta da palavra holografias metafóricas que são como pontos de luz em meio às trevas que envolvem o campo semântico como um todo. Sigo os rastros do autor, nessa espécie de passo a passo em que “Se partirmos do pressuposto de que um oriki não é um poema qualquer – que apenas versa sobre um determinado Orixá, rendendo-lhe culto e homenagem – mas uma ‘estância’ onde se guarda o axé, a questão da sua tradução passa a ser um problema” (p. 9). Os poemas falam por si só desse lugar de memória e devoção.
Oxum
Fulgores flavos
Ou fulvos fulgores
São áureas luzes
Espelhadas de teu véu
Dourada e doce
És tu, dona d’água,
a flavescente fonte
Que reflete um sol no rio
Fazendo do rio um céu
(p. 29).
Se a poesia, enquanto gênero, traduz o interior que via iluminando o caminho do leitor, sua prosa captada de maneira panóptica pelas “passagens” benjaminianas adaptadas ao seu lugar (físico) de fala tocam esses dois lados de um mesmo mundo que uma fronteira física não pode separar. Um pé no Paraná e outro em Santa Catarina reflete o cotidiano de inúmeras pessoas que palmilham esse território. E o que são essas esquinas descritas em uma espécie de paisagem sentimental e memorialística? “A gente nunca permanece por muito tempo numa esquina, pois ali se produz uma sensação incômoda, porque teoricamente é concebida para ser um lugar de passagem” (Scramin, p.9).
História e filosofia se fazem presentes no discurso nada homogêneo de seus cruzamentos, não bastassem as questões geográficas atinentes ao construto. “E outras, atravessadas pelas esquinas do discurso reflexivo, indicam que a literatura está no cruzamento da Rua Heráclito com a Rua Parmênides. Ali, onde o pensamento é pensado, nascendo numa esquina, como escreve Caio, leitor de César Aira” (Scramin, p.10). Aprendo com Caio que “Uma coisa não é nada sem a imagem que fazemos dela” (p. 33).
E como se recuperasse a modernidade precoce de Machado de Assis em algumas palavras dispersas pelas esquinas da palavra me deparo com a imagem de que “Pagu, com um piparote, traduziu toda a filosofia matriarcal de Oswald de Andrade, quando em uma de suas páginas ilustradas, nua porque livre, escreveu para o homem: “vae ver si estou na esquina” (p. 44).
Gosto de como Caio Moreira extrai do leitor uma inteligência nativa que repousa por entre as dobras. “O único jeito de não produzir a dobra é continuar andando em linha reta ou cessar a caminhada” (p. 49). E vou caminhando entre a denotação e a conotação na busca incessante da decodificação sugerida. “O ensaio nasceria não do encontro do autor com um tema, mas de “dois temas entre si”. A esquina é esse diagrama” (p. 50). Mas como se dá essa convergência entre dois pontos, dois polos, dois mundos? Simplesmente “As coisas se encontram, se esquinam” (p. 81). Considero bastante inteligível a proposta desse livro. E a ideia de sua gênese me parece coroar a leitura com as palavras derradeiras: “Tudo isso fiquei sabendo frequentando uma biblioteca instalada entre a Coronel Rupp e a Max Metzler. Mais não digo!” (Moreira, p. 89).
REFERÊNCIAS
MOREIRA, Caio. Oriki daqui. Curitiba: Medusa, 2019.
MOREIRA, Caio. Avenidas. Joinville, SC: Micronotas, 2020.
SCRAMIN, Susana. Prefácio. In: Avenidas. Joinville, SC: Micronotas, 2020.