“Depressões” de Herta Müller – Por Andri Carvão
O canal que mantenho no YouTube desde outubro de 2021, Poesia Nunca Mais, onde indico livros e compartilho algumas de minhas leituras, deu margem a que eu escrevesse minhas impressões de leituras como roteiros para a realização dos vídeos. A princípio em forma de tópicos, resolvi organizar os escritos de modo a que pudessem ser lidos em algum meio: blog, rede social, site etc. Com a apreciação sobre Depressões de Herta Müller prosseguimos com a coluna “Traça de Livro: …impressões de leitura…”.
Vida longa à Ruído Manifesto e aos seus leitores!”.
Andri Carvão é formado em Letras pela Universidade de São Paulo, autor de Um sol para cada montanha, Poemas do golpe, Dança do fogo dança da chuva e O mundo gira até ficar jiraiya, dentre outros. Apresenta o canal no YouTube Poesia Nunca Mais e publica poemas quinzenalmente no site O Partisano.
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Depressões | Herta Müller
Depressões é um livro de contos da escritora romena Herta Müller (1953), Prêmio Nobel de Literatura de 2009.
Em “O discurso fúnebre” um filho ou uma filha narra em primeira pessoa o velório, o caixão no meio da sala, e o cortejo até o enterro do pai. A partir dos retratos de família nas paredes o narrador ou narradora relata a história desse pai; o passar do tempo, da infância à vida adulta, como num álbum de família.
Na segunda parte do conto, um dos dois homenzinhos bêbados, que baixam o caixão para a cova com uma corda, assume a primeira pessoa na narrativa e conta à criança a vida pregressa de seu pai durante a guerra: as mortes e o estupro de uma mulher russa numa plantação de nabos junto a mais quatro soldados. Desde então, “nabos” se tornou sinônimo do que o seu pai trazia entre as pernas, as armas dos soldados. O canto estridente de uma cantora de ópera lembra os gritos da mulher estuprada. As mulheres, nabos…
É então que o conto assume uma atmosfera onírica de delírio e pesadelo.
No conto “O banho suábio”, uma família toma banho na mesma banheira, um de cada vez: o pequeno Arni, o pai, a avó, o avô. A água negra da banheira demora para esfriar.
Em “Minha família”, temos um rosário de misérias.
Tanto em “Banho suábio” como em “Minha família” há o recurso da repetição em contos anafóricos que soam como a poesia contemporânea.
O livro de Herta Müller é composto por 15 contos, sendo o mais longo o conto ou novela que dá título à coletânea.
Em “Depressões”, temos um besouro no ouvido e dentro do ouvido um zumbido. Ela comia flores de acácia e outras flores comestíveis, e o avô sempre pontual “E você não quer ficar boba, quer?”; “E você não quer ficar muda, quer?”, diz como forma de alertá-la sobre o perigo de comer flores por conter moscas negras dentro delas. Ela brinca de papai e mamãe no celeiro e dá à luz bonecas e bebês de sabugo de milho. Veste os gatos com roupas de bonecas para niná-los. Caça borboletas, moscas, andorinhas, cachorros mortos. “E de onde veio a primeira borboleta, vovô? E pare já com tanta pergunta boba, ninguém sabe, e vá brincar.” (p. 19)
O pai não tocou na esposa na noite de núpcias. O pai não tocou na esposa durante a colheita de cerejas. Seu pai a espancava e espancava também a esposa, sua mãe.
As superstições do avô.
As gralhas, os gatos, os cachorros são todos enxotados por homens e mulheres.
Os passarinhos cantam sempre a mesma canção e quando se vão, deixam a mesma merda branca.
Vacas. O dia em que a vaca a chifrou e o ódio que sentiu.
Gralhas, mariposas, salamandras, ratos, galinhas, ovelhas, sapos, cobras, libélulas – a vida no campo.
A descoberta da morte, os mortos saqueados, o velório em casa “(…) o último defunto vigia o cemitério até a próxima pessoa morrer.” (p. 28)
Vivências. A presença do quintal, do jardim, da roça, da igreja, a festa na paróquia, os afazeres domésticos das mulheres e os homens na taberna. O milho, a gritaria das crianças saindo da escola, a neve e a primavera, urtigas e a passagem do tempo, nascimento, vida e morte entre crianças, adultos e velhos. Primavera, verão, outono e neve.
A bruxa da aldeia, “bruxa” porque fazia tudo diferente das demais. Os espantalhos vestidos com ternos dos maridos recheados de palha e sem cabeças. A fome no ar.
Vovô anda pelo quintal falando sozinho.
Na casinha, ela chora escondida. Mamãe batia se a descobrisse chorando escondida.
A sexualidade infantil. A descoberta de Heine, seu primo, ao compartilhar o urinol. O medo dos raios que iluminam o quarto onde deitam-se juntos.
“Deixe estar, então nós vamos nos casar.”
“Mas você é meu primo.” (p. 49)
Gansos, andorinhas, pardais, o veterinário, o dentista. O padre e o prefeito não se entendem por conta do sino enferrujado.
A narradora, Käthe, seu pai e sua mãe no carro pelo campo a caminho da casa da velha.
“O ar quente da barriga de Käthe tem o cheiro de peras podres.” (p. 100)
“Seu andar (o do pai) cheira a peras podres.” (p. 101)
Ela e Käthe ficam na casa da velha, enquanto o pai e a tia saem de carro.
“Vejo a calcinha azul de Käthe com a mancha amarela de peras podres entre suas coxas.” (p. 102)
As duas são primas.
O carro retorna sem os caixotes.
“O assento ainda está quente das coxas da tia e tem cheiro de peras podres.” (p. 104)
Ao chegarem em casa, seu pai atira o dinheiro na mesa. Sua mãe está remendando as meias dele.
Depressões é o livro de estreia de Herta Müller, autora romena de língua alemã. Os contos abarcam o período do final da Segunda Guerra Mundial até os anos 80 numa região entre Romênia, Sérvia e Hungria, ainda sob o regime socialista. A linguagem, além de anafórica, apresenta enumerações de animais e vegetais. A narrativa não linear com começo, meio e fim, prefere trazer o leitor para o meio do turbilhão como quem pega o bonde andando e precisa se adaptar. A escritora mais sugere através de imagens e pequenos movimentos cotidianos do que explicita. A poesia está presente nas entrelinhas.
Edição lida:
MÜLLER, Herta, Depressões, 162 p., tradução Ingrid Ani Assmann, São Paulo: ed. Globo, 2010.