“Descanse em paz” de Joyce Carol Oates – Por Andri Carvão
“O canal que mantenho no YouTube desde outubro de 2021, Poesia Nunca Mais, onde indico livros e compartilho algumas de minhas leituras, deu margem a que eu escrevesse minhas impressões de leituras como roteiros para a realização dos vídeos. A princípio em forma de tópicos, resolvi organizar os escritos de modo a que pudessem ser lidos em algum meio: blog, rede social, site etc. Com a apreciação sobre Descanse em paz de Joyce Carol Oates prosseguimos com a coluna “Traça de Livro: …impressões de leitura…”.
Vida longa à Ruído Manifesto e aos seus leitores!”.
Andri Carvão é formado em Letras pela Universidade de São Paulo, autor de Um sol para cada montanha, Poemas do golpe, Dança do fogo dança da chuva e O mundo gira até ficar jiraiya, dentre outros. Apresenta o canal no YouTube Poesia Nunca Mais e publica poemas quinzenalmente no site O Partisano.
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Descanse em paz: histórias sobre os últimos dias de Poe, Dickinson, Twain, James e Hemingway | Joyce Carol Oates
De Joyce Carol Oates, li recentemente Levo você até lá, romance sobre uma jovem branca de classe média alta, estudante universitária de filosofia. A história se divide em dois eixos narrativos. Na primeira parte do romance, a jovem consegue uma vaga na irmandade Kappa Gamma Pi (KGP), uma espécie de lar para moças, onde convive com jovens de sua classe em um ambiente de regras muito rígidas. Na segunda parte, temos a sua experiência na universidade, onde se apaixona por Vernor Matheius, um estudante negro muito participativo em sala de aula, sempre questionador e, por vezes, metido em debates acalorados com os professores de maneira a deixá-los em saias justas diante da classe. Ela o ama, porém não é correspondida. Em verdade não há por parte do jovem sequer o mínimo interesse sexual pela moça (ela é anoréxica, esquisita, problemática), embora, devido a sua (dela) insistência, eles iniciam uma relação inter-racial conturbada, em meio à luta pelos direitos civis nos EUA dos anos 60.
Mas vamos ao motivo anunciado pelo título: publicado em 2008, Descanse em paz é um livro de contos ensaísticos da escritora norte-americana Joyce Carol Oates (1938).
Neste livro, a autora recria os últimos dias de cinco autores-personagens: Edgar Allan Poe, Emily Dickinson, Mark Twain, Henry James e Ernest Hemingway.
Em ‘Poe póstumo; ou O farol’, JCO traz o autor Edgar Allan Poe recém viúvo de sua prima, com quem se casou quando ela tinha apenas 13 anos, Virginia Eliza Clemm Poe (1809-1849). Sua esposa é mencionada pela sigla V.
No conto, Poe narra em forma de diário sua experiência de guardião do Farol Viña del Mar, no Chile, patrocinado por seu benfeitor Dr. Bertram Shaw, acompanhado por Mercury, seu fox terrier. Além de subir os cerca de 200 degraus da escadaria em espiral para acender o farol, Poe reflete sobre a perda da esposa, sobre a sua tradução de Plotino e Jeremias Gotthelf, as travessuras de Mercury e a própria escrita do diário.
Em ‘EDickinsonRepliLuxe’, o casal Sr. e Sra. Krim, já no século XXI, pesquisa pela internet informações sobre o RepliLuxe e decide ir ao shopping comprar um exemplar. Na loja, entre modelos dos mais variados, desde “grandes atletas, grandes líderes militares, grandes inventores, grandes compositores, músicos, líderes mundiais, artistas, artistas performáticos, escritores e poetas”, decidem escolher um modelo de Sylvia Plath. Mas, devido às restrições por conta dos direitos autorais e como apenas figuras em domínio público estavam disponíveis, a Sra. Krim opta pelo modelo EDickinsonRepliLuxe, o andróide da poeta Emily Dickinson.
Assim se inicia o conto ‘Vovô Clemens & Peixe-anjo, 1906’: “Meninas com idade entre dez e dezesseis anos. Nem um dia a menos do que dez, nem um dia a mais do que quinze.” O velho escritor Samuel Langhorne Clemens, mais conhecido como Mark Twain, autor dos sucessos As aventuras de Tom Sawyer e de As aventuras de Huckleberry Finn, mantém o hábito de se corresponder com ninfetas, meninas perfeitas para o Clube Aquarium onde o Almirante Sam Clemens era o rei, reinando absoluto como “o único sócio adulto”; meninas perfeitas, os peixes-anjos do Vovô Clemens. Prática esta que, devido ao seu sucesso de público, prestígio e credibilidade perante a sociedade, afora o fato de ser um senhor de 70 anos, era vista com bons olhos pelos pais das meninas e, inclusive, incentivada por eles. Depois da morte da esposa e da filha favorita, mortes das quais ele nunca se recuperou, Mark Twain ou Vovô Clemens criou o hábito da troca de cartas entre o grande escritor e suas fãs, as peixes-anjos.
Em ‘O mestre do Hospital São Bartolomeu, 1914-1916’, Henry James é voluntário no “pavilhão de feridos”. Aos 71 anos, sofrendo de gota e edema nas duas pernas, apoiado em uma bengala, o escritor é reconhecido por uma das enfermeiras. Henry James percebe que todas as voluntárias, a julgar pela aliança na mão direita, são de classe superior à sua. Designado para o Pavilhão Seis, às voltas com a chegada de jovens soldados, combatentes feridos e mutilados, prestigiado em seu círculo – o Mestre –, mas ignorado pelo grande público, o escritor se sente nauseado.
No Pavilhão Seis, Henry James se dedica a leitura do romance de Walter Scott e da poesia de Walt Whitman para seus jovens soldados feridos e mutilados preferidos, mesmo sob o olhar de censura da enfermeira chefe.
Talvez o conto mais contundente de Descanse em paz, seja ‘Papa em Ketchum, 1961’, que mostra Ernest Hemingway (1899-1961) preparando a espingarda calibre 12 para estourar seus miolos com precisão cirúrgica, tão certeiro quanto no passado o foi seu pai, tal e qual a prosa jornalística do próprio Papa Hemingway emulada por Joyce Carol Oates. A impressão que se tem é a de que, mesmo traçando um relato por vezes de forma depreciativa, talvez a autora tenha Hemingway como o seu ideal de escritor, pela maneira com que ela expõe, esmiúça e chafurda mesmo na vida do autor de O velho e o mar. É o conto mais ensaístico de todos, quase um estudo, e que fecha esta coletânea de Joyce Carol Oates.
A partir de traços não só biográficos, mas também emulando a escrita de cada um dos autores mesclada ao estilo gótico tão característico de JCO, a autora constrói narrativas ficcionais como réquiens ou como o canto do cisne de cinco grandes escritores americanos.
Edição lida:
OATES, Joyce Carol, Descanse em paz: histórias sobre os últimos dias de Poe, Dickinson, Twain, James e Hemingway, tradução: Eliza Nazarian, 240 p., Editora Leya, 1ª edição, 2010.