Dois contos de Adriana da Costa Teles
Adriana da Costa Teles é pesquisadora e escritora, pós-doutora em literatura pela Universidade de São Paulo (USP), autora do romance Íris Negra (Treco/Benfazeja, 2020) e de Machado e Shakespeare: Intertextualidades (Perspectiva, 2017), Uma linhagem Capitu (Appris, 2021) e O labirinto enunciativo em Memorial de Aires (Annablume, 2009).
Instagram: @literatura_falada_
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Orquídeas azuis
Caminhava devagar. Já tinha perdido o ônibus mesmo. De que adiantava correr? E ela gostava daquela vizinhança. Era bonita. Arborizada. Acolhedora. Gostava também do calçamento. Das pedras cinzas, irregulares e ásperas. Não se importava com alguns buracos que eventualmente encontrava. Eles eram parte do todo e este definitivamente a agradava. Tinha sorte de trabalhar em um lugar assim bonito. E de ter que vagar por aquelas ruas diariamente. E até de perder o ônibus de vez em quando. Não sempre. Claro. Porque também gostava de chegar em casa. Tomar banho. E assumir os seus outros afazeres. Lavar, passar, cozinhar… Etc. Também apreciava desfrutar de caminhadas como aquela, que as circunstâncias, por vezes, lhe propiciavam. Não precisava caminhar cega pela correria. Mas, por outro lado, era intimada a apreciar o caminho. Quase sem pressa. E isso era bom, vez ou outra. Sempre não dava. Pois o serviço de casa não dava trégua. E começava a atrasar. Jô passava, então, perto de uma banca de flores. Já estava bem próxima ao ponto. E resolveu parar. Observar as suas formas e cores. Se tivesse coragem iria querer sentir o perfume de cada uma delas. Mas era chato… E ela não tinha o direito. Não ia comprar mesmo. Só as observou com cuidado. E viu muitas delas. Rosas. Margaridas. Cravos. Lírios. Jasmins. Azaleias. Gérberas. Peônias. Narcisos. Era uma beleza. As mais encantadoras eram as peônias. Eram lindas e incomuns. Os botões eram tão fechados em si. Pareciam bulbos de cebola. Gordos e redondos. Abundantes e ousados. Os abertos, então! Eram pétalas que não acabavam mais. Flor frondosa e cheia de escândalo. Deu alguns passos e viu-se, então, próxima às orquídeas. Coloridas, durinhas e empinadas. Uma beleza! E uma em especial chamou a sua atenção. Era azul royal. Aproximou-se. Aquilo, sim, era incrível. Ficou boba com toda aquela beleza.
“Dá muita orquídea essa azul…?” Perguntou à jovem responsável pela banca.
“Tem a época do ano certa… mas depois dessa florada a orquídea é branca.”
Como assim? Olhou-a interrogativa. Não compreendia.
“Ela é branca, na verdade. Tá escrito aqui, ó…” Mostrou-lhe então uma etiqueta, onde se lia justamente isso. A orquídea era branca. “É um tratamento que eles dão. Não sei direito… Pra cor ficar assim.”
Olhou novamente para a orquídea azul. Dessa vez, profundamente decepcionada. E foi invadida por uma tristeza enorme. Afinal, existiriam ou não orquídeas daquela cor? Se existissem, seriam tão bonitas como aquela que era falsa? E porque, afinal, fazer aquilo com uma pobre orquídea branca? Ela não era, em si, suficiente para o mundo? Olhou-a novamente. Séria. E teve muita pena da pobre flor. Pois, por instantes, achou-a mesmo bizarra dentro daquela extravagância forjada, feito uma prostituta cansada e muito maquiada. Sentiu-se, então, profundamente entediada. Olhando para aquela flor carente de sentido. Avulsa daquele todo. De um azul eufórico, sedutor e profundamente inútil. Tadinha… E era tão durinha e empinada. Tão enganada do seu papel no mundo. Mas concluiu, naquele instante, e com bastante segurança, que era hora de ir para o ponto. Se não, juntava muita gente para entrar no ônibus e ela ficava no fim da fila. Era sexta-feira. Todo mundo ia meio eufórico e destemperado. E ela não queria que a porta se fechasse nas suas costas. Barulhenta. Trazendo-lhe o ar quente e carbônico da rua, condensado e sufocante. Desejou, então, não ter perdido o ônibus. Quanto mais tarde, mais cheio ele vinha. Certamente teria que ir de pé. Equilibrando-se. Mas, com alguma sorte, não ouviria a porta fechar atrás de si como alguém que batia palma na sua orelha. Inconveniente. O fato era que se tivesse corrido um pouquinho mais, não teria perdido a condução e já estaria perto de casa. Pensou desanimada. A alma tingida de azul.
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Sobre o almoço da segunda
Eram nove horas da noite do domingo. E ela achou que era melhor temperar o frango para o dia seguinte. Se não, não pegava gosto. Ainda mais que pediria para que fosse assado. Recheado com farofa. Queria ainda uma salada de folhas verdes e tomates que fossem bem vermelhos. Pensou nos tomates-cereja. Ficariam perfeitos. Ovais. Reluzentes. Combinavam com a ave. O peito protuberante. Arredondado. As coxas idem. Servido na louça branca, ficaria lindo. Especialmente se a pele da ave estivesse bem douradinha. Quase marrom. Queria ela cortar a carne. Romper a pele crocante com uma faca de serra. Pediria para a Jô que colocasse o frango inteiro na travessa branca, rodeado por batatas cortadas em rodelas grossas. Salpicadas por ervas finas. Daquelas que comprara no mercado. E que vinham numa embalagem de plástico amarela. Quase pôde sentir o cheiro do prato servido. E talvez ele fosse melhor do que o próprio sabor. Tirou a ave gelada do pacote plástico. Colocou-a em uma travessa refratária. O peito para cima. As coxas muito brancas. A pele enrugada. Os pés e os miúdos em um saquinho dentro do corpo do bicho. Tirou-os de lá. Olhou. Pensou em jogar fora. Mas não. Alguém lhe disse que os miúdos serviam para a farofa. Ou não? Abriu o saquinho. Tirou um dos pés. As unhas cortadas. A pele grossa e crispada. Parecia a mão de uma senhora muito magra e elegante. Os dedos longos que receberiam anéis caros. Diamantes. Rubis. Esmeraldas. As unhas seriam pintadas com cores berrantes. Pink. Rosa choque. Cintilante. Mas isso era incompatível com o requinte. Ficou confusa por instantes. Talvez os rubis, as esmeraldas e os diamantes fossem falsos. Vidro. E aquela mão seria a mão de uma cafetina triste e decadente. E cada ruga que via carregaria uma decepção. Descobriu então que a mão não era magra. E sim seca. E triste. Resolveu jogar os pés fora. Tirá-los da vista. E o que faria com os miúdos? Colocou sal e limão para que não se deteriorassem até o dia seguinte. Pôs em uma vasilha com tampa. Guardou na geladeira. Encarou a ave branca. Jogou o tempero batido em cima do peito. Como o espalharia? Tinha um pincel? Procurou na gaveta. Não. Começou a espalhar com a mão direita. A esquerda segurava a ave, muito gelada e lisa. A mão fria massageava a pele sulcada e encarquilhada daquele adulto recém-nascido. Sim. Não diziam que os frangos estão prontos para o abate com dois meses? Virou-o de bruços. Mais um pouco de tempero. Espalhou com a mão massageando as suas costas com carinho. E por dentro? Teria que colocar a mão lá… Achou estranho. Mas era apenas um esqueleto frágil envolto em carnes frias. Um oco. Vazio. Tentou. A mão não entrava. Despejou o restante do tempero lá dentro. E agora? Como espalharia? Tentou segurá-lo pelas coxas para chacoalhá-lo. Ele escorregou de suas mãos e caiu no refratário fazendo enorme barulho. “Está tudo bem aí?” Era o marido que perguntava da sala. “Sim!” Disse em voz alta e sonora, pensando que o correto talvez fosse temperar a ave só por fora. Apreciou-a por instantes. Ela estava praticamente como quando a tirou da embalagem. Um pouco mais reluzente devido ao azeite. A cebola e o alho batidos eram da mesma cor que a sua pele enrugada e fria. As mãos muito geladas cheirando a tempero suspensas no ar. Sentiu-as dormentes. Lavou com água morna e a sensação foi desagradável. Colocou bastante detergente, mas elas ficariam cheirando tempero por longas horas. Na manhã seguinte, o cheiro ainda estaria lá. Ou seria impressão? À noite sonhou um sonho estranho. Muitos frangos. Assados. Ensopados. Fritos. Inteiros ou à passarinho. Servidos em uma grande festa. E que tinha como anfitriã uma cafetina idosa e sem dentes. Acordou perturbada. Mas na hora do almoço já havia esquecido de tudo isso. Comeu o frango, que a empregada serviu com purê de batatas, que combinava com a farofa. E com salada de rúcula. Com tomates-pera. E com arroz branco. Na verdade, ela não se lembrava dos planos da noite anterior. Também não se lembrou de perguntar pelos miúdos, que comeu na farofa sem nem perceber.