Dois contos de Alcimare Dalbone
Alcimare Dalbone é autora do livro Meu Primeiro Manifesto Feminista, que é uma reunião de 11 contos que transitam pelo universo feminino/feminista, e foi lançado pela + ou – Editora e inclui o conto “O elevador”, que recebeu o Prêmio Maria José Maldonado de Literatura 2018. Seu conto “Escrever é sonhar” também ganhou o PMJM de Literatura 2019.
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O elevador
Que eleva é uma das definições de elevador segundo o dicionário Aurélio. A outra é o aparelho que serve para fazer transportes de um a outro nível. A curiosidade em pesquisar esta palavra específica ocorreu-me logo após o desconcertante episódio em uma destas caixas angustiantes. Aquela situação fez crescer, em mim, um quê de claustrofobia que, até então, nem sabia que poderia existir. Aquele era para ter sido mais um dia comum em que eu, comumente usava meu uniforme de escola pública municipal. Era para ter sido, mas não foi. Portanto, perdoe-me caso a mulher madura que agora lhes narra se confundir com a menina, porque, depois do acontecido, como que numa reminiscência pós-traumática, ficou impossível distinguir uma da outra.
Tudo começou pela aula de geografia em que a professora, mais empolgada que a turma com sua brilhante proposta de avaliação, anunciou que deveria ser entregue, ao final de uma semana, uma maquete que, por sorteio, minha equipe teria que fazer sobre vulcões. O sinal bateu encerrando as aulas que tinham sido entediantes, mas no portão, Pedro, pela primeira vez me cumprimentara com um sorriso tímido e logo em seguida, meu whatsapp me notificava de uma mensagem me chamando para ir ao cinema no sábado. Olhei para ele retribuindo com um sorriso afirmativo. A noite tinha sido longa porque, numa inversão de papéis, precisei ficar acordada até mais tarde cuidando de minha mãe que ardia em febre. Meu pai estava embarcado naquela quinzena e, nesses períodos, acabávamos uma cuidando da outra. O convite de Pedro fez meu sacrifício de ter acordado cedo ter valido a pena. Acompanhando tudo de perto e feliz porque, enfim, eu teria oficialmente um encontro, Gui, meu melhor amigo, resolveu acompanhar minha mudança de trajeto na volta para casa. O que eu amei, já que odiava fazer longas caminhadas sozinha. O dia estava agradável e contrastava com a cara séria dos pedestres sempre apressados. Nós dois, ao contrário, íamos devagar, contando casos e tentando não criar expectativas, fazendo parecer que tínhamos todo o tempo do mundo.
Chegamos ao edifício de dez andares, onde a papelaria, ali, escondidinha no final do corredor do último andar, tinha o preço bem mais em conta que a das outras do centro da cidade. Depois de algumas discordâncias sobre qual tamanho de isopor levar, qual cor de tinta e se uma ou outra ferramenta, como estilete e pistola de cola quente era realmente necessária, saímos, de modo geral, satisfeitos com as compras.
Apertamos o botão do elevador e fomos para a janela admirar a altura em que nos encontrávamos. Cheguei a comentar algo sobre como saltar de bungee jumping deveria ajudar a aliviar a ansiedade. Era uma vertigem boa que, mesmo não praticando tal esporte, eu sentiria até sábado. Gui estava dizendo que era melhor criar cactos que expectativas quando a porta se abriu e eu, cumprindo um ritual da vaidade feminina, fui até o espelho para dar uma arrumada no cabelo, com Gui assegurando que Pedro me acharia linda do jeito como eu estava e que não havia com o que me preocupar, já que cada fio continuava em seu devido lugar, cumprindo sua função de proteger meu couro cabeludo das agressões solares. Ri da “piada” que ironizava alguma matéria sobre qual a função dos pelos em nosso corpo. A verdade é que estava rindo à toa e acharia graça até da coisa mais idiota que ele dissesse.
Cerca de vinte segundos nos separariam daquela vertiginosa sensação de perigo decorrente da altura e nos levariam de volta à ilusória segurança do piso térreo. Mas foi então que, naquele rápido intervalo, meu pavor por elevadores teve início. O percurso foi interrompido e, no nono andar, o homem entrou. Alto, barriga saliente, barbudo, o cabelo ralo e grisalho; aparentava uns cinquenta anos de idade. Agora, não sinto dificuldades em descrevê-lo, mas, de fato, não sei, dos três, quem reparou em quem primeiro, já que, naquele momento, só o que senti foram os tais pelos de meu corpo se eriçando e dali em diante, tudo que por muito tempo me recordei foram dos olhos que me trespassaram.
Alguns homens podem alegar que todas as mulheres gostam de se sentirem desejadas, porém algum sentido, não sei qual, insistia que desejo não era a palavra correta para expressar o que, em mim, só causava repulsa. Dele, exalava um odor forte que me causava náuseas. Fiquei imóvel, em pânico por não ter para onde correr. Medo de que sacasse uma arma e nos obrigasse a sair do prédio com ele, ferir Gui e me… Já tinha sido encarada de muitas formas, e posso garantir que o suor frio que me secou a boca não era uma reação ao exagerado fruto de minha imaginação. A fixação daquele olhar me analisava tão sem escrúpulos que me reduzia a bunda, coxas e peitos esperando para serem abatidos. Gui virou-me para ele e, mesmo de costas, soube, pela face de meu amigo, que o alvo ainda não havia se desviado. Ergui a cabeça, demonstrando uma confiança que deveria estar presente, e me arrependi no instante em que cruzei o meu olhar com aquele que, mesmo vindo de um espelho, não me refletia; refratava-me.
Refratava-me os sonhos de menina adolescente rasgando minhas roupas e despedaçando um resquício de pureza que teimava em ficar, mesmo dilacerado. Aquele olhar me penetrava sem consentimento, sem uma mínima permissão, sem qualquer autorização de minha parte, para invadir, de modo tão cruel, a intimidade que era ainda tão minha. Por que o primeiro andar não chegava e aquele escape não surgia logo? Olhei para cima almejando que estivéssemos a céu aberto e a vastidão azul pudesse me livrar da pequenez que, em mim, se instaurava, mas só o que enxergava era um cinza metálico, sem vida. Apertei as unhas contra a carne das palmas de minhas mãos para ver se suportava melhor aquela descida que mais parecia me atirar ao inferno. Só que eu estava muito mais para vulcão adormecido que para ardente fogo dantesco.
Porque era tão violento o poder embutido naquele olhar que me desnudava, fiquei sem reação. Depois pensaria em tudo que poderia ter feito e dito, como, por exemplo, um sonoro “Está olhando o quê?” ou “Perdeu alguma coisa aqui?”, todavia, nunca me ocorreu estar presa numa situação daquele tipo. Se levasse em conta as garotas mais populares da escola e do bairro, poderia se considerar uma sensualidade quase nula na magreleza de meu corpo, de menina de treze anos, que nem seios fartos não tinha. Minha boca não era carnuda e meus olhos nunca sugeriram nada de “caliente” naquela fatídica quarta-feira. Não usava maquiagem e, como, especificamente, naquela manhã, acordara atrasada tanto pelo cansaço como por ter esquecido de ajustar o despertador do celular, o cabelo, nem de longe, havia visto uma piastra. O que, então, em mim, despertara a frieza do olhar cortante e pontiagudo daquele homem? Por que tanta vontade, nele, de me reprimir em tal estágio de constrangimento? Por que ele parecia ter tanto prazer em me fazer sentir acuada pelo medo? Por que Gui e eu não nos demoramos mais dez minutos na papelaria? Isso teria evitado todo esse mal estar. Se não fosse comigo, teria sido com qualquer outra, independente de roupa e idade? Se a violência se tornasse física, será que Pedro compreenderia ou passaria a ter nojo de mim? E se fossem publicadas nos jornais, notícias que envergonhassem meus pais? A garganta queimou, mas contive as lágrimas. Não queria parecer mais fragilizada do que já estava. O que doía mais era saber que não estava diante de nenhum monstro ou E.T. e sim, de um homem, apesar de, nele, não transparecer humanidade alguma. Com minha mente fervilhando estes questionamentos, virei-me, num impulso, para alcançar a saída, assim que a porta se abrisse.
No entanto, quando a luz do sol clareou minha visão, meus pés, grudados naquele falso chão, só conseguiram se deslocar depois que uma leve pressão em meus ombros conduziu-me ao hall do prédio. O homem saiu levando consigo seu olhar, e deixando apático, o meu. Porém sua ausência não foi suficiente para que me acalmasse. Algo havia morrido em mim. Gui, temeroso de que ele estivesse nos esperando em uma esquina qualquer e que algo pior, pudesse acontecer na rua, mesmo que cheia de carros e pedestres circulando, ligou para que sua mãe fosse nos buscar de carro. A secretária ofereceu-me um copo de água alegando que, pela palidez, eu deveria ter tido uma queda de pressão e, nem um obrigada, consegui verbalizar. Algo havia se calado em mim. A queda havia sido outra, invisível e não detectada por nenhum aparelho médico. A minha autoestima é que tinha despencado nove andares em eternos e infernais vinte segundos.
Meio sem jeito, peguei o copo e, lavando-me, internamente, com aquela água, soube que, ao sair daquele elevador, eu, M. L., já não era mais uma menina e suas ilusões. A selvageria daquele olhar havia me transportado ao nível de mulher e seus constantes constrangimentos.
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Escrever é sonhar
Começa a entardecer e tenho a terceira crise de ansiedade. Aproxima-se a hora marcada com a jornalista que irá me entrevistar. Devoro um pote de creme de avelã e fico com medo de ter dor de barriga durante a sessão de perguntas. O que gera a quarta crise. A primeira tinha sido ao me deitar e ficar encarando o teto sem conseguir dormir imaginando o que poderia ser perguntado e quais respostas daria. A segunda foi ao acordar ainda sonolento após a impressão de ter apenas cochilado e não repousado uma noite inteira, o que me ajudaria a ser uma pessoa menos ansiosa. Caminho em passos lentos da cozinha para a sacada da sala de estar como se o arrastar de meus pés no piso de porcelanato gelado tivesse o poder de desacelerar o tempo. Agarro-me ao pote do creme ansiolítico como se comer proporcionasse alívio definitivo e não só imediato. Da minha vista do terceiro andar, olho para as pessoas, apressadas pela rua, alheias ao sol que se põe sobre minhas expectativas. Um vento cortante de inverno leva-me de volta à sala e aconchego-me em minha poltrona preferida, onde já que não posso vencê-los, uno-me aos meus pensamentos.
Amo escrever. As palavras me acalmam, mas toda a parte de divulgação me deixa agoniado. Entrevistas, fotos para jornais e revistas. Gerar conteúdo para as redes sociais. “Faz parte do kit, Bernardo!” – lembra-me a voz resignada de meu editor. Não entendo o porquê de tanta exposição do autor se o que, na verdade importa, é a sua invenção. Não é a obra que deveria ficar em evidência?
Sou escritor porque a arte me escolheu. Mas nem sempre o fui. Nem me lembro de algum dia ter desejado o ser. Aconteceu. Não sabia que uma dor podia ser tão intensa até perder minha mãe. A morte é estúpida e não sente. Se o espectro mortal sentisse a dor que causa, se declararia morto e estaria estabelecida no universo a vida eterna. O para sempre estaria garantido; mas o para sempre não quis minha mãe e a morte a levou me obrigando a conviver com sua ausência. E nunca uma ausência tinha se feito tão presente. E foi assim que me tornei um morto-vivo. E morto-vivendo isolei-me do mundo mesmo que rodeado de gente. Eu não me sentia gente sem a pessoa que me fez quem sou. E mesmo presente me fazia ausente. E talvez tenha sido para não enlouquecer que me surpreendi vivendo em um mundo paralelo entre a realidade e a ficção. Entre a oralidade e a palavra escrita, onde para realmente ver é necessário fechar os olhos.
Atualmente, vivo como se sonhasse e sonho como se vivesse. São mais vivos os meus sonhos do que muitas vezes o é a minha não sonhada realidade. Quantas vezes desejei que me acordassem do pesadelo de viver certos dias nebulosos. Dias nebulosos como nebulosas são as camadas imateriais dos sonhos. Sonhos que, às vezes, se concretizam deixando menos incorpórea a vida.
Vida que voltei a viver por meio das histórias, por mim, criadas. Sou o criador dos cenários, das pessoas, das tramas. Gosto da ideia de ser deus quando escrevo e de rir da cara da morte ao desafiá-la nas teias que teço. Sou o deus-aranha traçando o destino das personagens fictícias muito mais reais que muita persona de carne e osso.
Um bip do celular interrompe meus devaneios. Leio a mensagem do grupo de amigos virtuais do qual sou membro. É o anúncio de um café literário do qual não farei parte devido à distante localização geográfica.
A vida tem dessas ironias. Quem mais senão meus amigos, que me recuso a chamar de imaginários, me fazem companhia nas noites de insônia? Quantos cafés esfriam devido ao calor dos diálogos que acabam por adoçar minha boca e tirar dos meus olhos a amargura? Quantas risadas escancaradas e lágrimas derramadas? Lágrimas que pingam como chuva no dia branco ainda por nascer do papel pautado.
E qual será a próxima pauta? Quando me tornei um escritor? De onde vem minha inspiração? Se consigo escrever em lugares tumultuados? De qual das minhas histórias gosto mais? Se são autobiográficas? Questiono-me se errei ao não deixar isso claro em meus escritos.
Ouço o som da campainha estridentemente verdadeira. Levanto-me e ando. A claridade embaça-me a visão. Abro a porta que não me leva para o país das maravilhas, mas sim a encarar a jornalista em pé diante de mim. É simpática e cumprimenta-me com a calma naturalizada pela rotina de trabalho a ela imposta. Não tenho a mesma naturalidade. Sinto-me como em frente ao meu duplo num espelho. Tento um sorriso sereno, mas sei que falhei. A vida real é chata.