Dois contos de Felipe Araujo
Felipe Araujo é escritor e professor de Filosofia. Na literatura se dedica a tratar sobre o cotidiano, sobre as coisas miúdas da vida, buscando uma escrita leve, mas reflexiva. É autor do livro Aprendizados de Miúdo (2021), além de inúmeros Fanzines. No doutorado pesquisa sobre guerra e artes marciais. É praticante de Capoeira Angola e Kung Fu. Ama cozinhar e dançar forró.
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Sobre queijos e beijos
Conheci, certa vez, uma moça que era apaixonada por queijos. Ela sabia tudo sobre queijos… Ou, ao menos, era assim que aparecia pra mim.
Já vi pessoas apaixonadas por pizza, lasanha, hambúrguer e até omelete. Mas, a sua paixão era queijo e aquilo era inusitado pra mim. Pedir uma pizza, por exemplo, era apenas uma justificativa para, na verdade, experimentar queijos.
Aprendi muito com ela. Eu que nem sabia a diferença entre mussarela e queijo prato, entre ricota e minas. Aprendi que tem “queijo queijo” e tem “queijo tipo”… Aprendi as nacionalidades, as vezes as cidades em que eram produzidos, os leites usados, os processos e tempos de cura. A propósito, para ela queijo podia curar, com o perdão da pobreza do trocadilho.
Para acordar e ter ânimo para o dia fazia seu omelette au fromage. Quando estava cansada, após um dia longo de trabalho, comia queijo com vinhos. Inclusive, aprendi muito sobre vinhos também, afinal, cada queijo acentuava o sabor do vinho, embora no caso dela a ordem dos fatos fosse invertida.
Durante um tempo de sua vida, quando conheceu a depressão, viajou pela Europa e conheceu queijos que nem sou capaz de repetir os nomes. E foi assim que superou essa fase difícil de sua vida.
Eu me apaixonei por essa moça. O jeito como ela fechava os olhos para falar da textura de determinado queijo era encantador. As pessoas apaixonadas são apaixonantes. Falam com tanta beleza e amor sobre seu objeto de desejo que convencem quem está ouvindo, fazem você se apaixonar pelo fruto da paixão delas. É contagiante… imagino que saibam os leitores sobre o que estou a dizer.
Nosso beijo aconteceu quase que naturalmente. Silencioso, lento… Nos beijamos com os dedos e com as bocas ao mesmo tempo. Sentia que ela degustava meus lábios, vagarosamente, como aperitivos em uma mesa a luz de velas. Eu sorria enquanto ela me beijava, porque me sentia desejável e importante.
Nem preciso dizer que aquela vida dela era cara, e embora ela nem fosse rica, eu não tinha condições alguma de acompanhar seu consumo requintado. Eu era do tipo que escolhia o queijo ralado mais barato no mercado… Soubesse ela dessa dupla blasfêmia (queijo em saquinho e o mais barato) penso que sequer teria falado comigo.
Em verdade, não sei por que começamos a sair. Ela era linda, viajava pela Europa, bebia vinho todos os dias e era arquiteta. Eu apenas um rapaz de Bangu, que preferia mortadela defumada e requeijão no meu pão, o que já era luxo e raridade. O melhor queijo que já comi foi um coalho sem marca em uma tapioca em Olinda, em uma tarde com chuva no carnaval. Nem sabia tanto se era o queijo que era bom ou se a fome o havia temperado, como dizia minha vó.
O fato é que eu me apaixonei também. Por ela e por queijos. Ela tinha várias vozes e mexia os dedinhos quando explicava as coisas. Tinha um corpo pequeno, que encolhido cabia entre meus braços, e com um encaixe de pernas que não saberia explicar em palavras nos abraçávamos de modo que não cansava ninguém, podendo assistir assim séries por horas.
Gostava também de vê-la trabalhar. Botava o lápis na boca, entre os dentes pequenos e muito brancos, para pensar em seus desenhos e dava pulinhos de alegria quando tinha uma ideia genial, do tipo: “- Já sei! Vou comprar cactos pra casa!” ou “Ahhh, lembrei o nome da personagem…”
Ela era fofa. E morava sozinha numa casa muito grande na zona sul. Eu era alguém que preenchia aquela casa, com as algumas piadas, alguns convites inesperados para dançar e mordidas.
Ela gostava da minha espontaneidade. E eu também tinha minhas paixões, também falava apaixonadamente sobre política e isso cativou ela. Os apaixonados apaixonam … Perdoem a repetitividade desse narrador.
Mas, a verdade é que éramos de mundos diferentes. E só nos conhecemos por acidente. E acidentes não são coisas ruins, como fomos ensinados a compreender.
Acidentalmente nos encontramos, em um curso de desenho em aquarela. E acidentalmente saímos da vida um do outro. Acidental é tudo aquilo que não é necessário. E muita coisa não é necessária nessa vida.
Por um período pensei ser ela necessária na minha. Depois os dias passaram, as semanas, e com elas passou a vontade forte de encontrar a moça dos queijos. Passou também a memória de sua pele arrepiada sempre que cheirava seu pescoço e a sua cama gigante com lençóis macios e brilhosos.
De necessária, passou a ser contingente. Como era o queijo para mim… poderia viver sem ele, embora com ele fosse muito melhor.
Hoje, quando vejo algo sobre queijo lembro dela; de seus olhinhos fechados, sua voz suave, seus dedinhos finos no meu rosto.
Espero que ela esteja feliz. E que conheçamos outros novos queijos e beijos, gostosos como os que experimentamos juntos.
15 de abril de 2020.
Correndo na praia
Certa vez fui à praia com meu pai; íamos muito à praia.
Fizemos todo o ritual: cravar o guarda-sol na diagonal, pegar a canga, enterrar apenas as pontas, fazer um pequeno travesseiro de areia.
Eu era bem pequeno, acho que tinha uns 7 anos, mas me lembro que via as pessoas correndo na areia, e quis fazer igual, me sentir grande. Avisei meu pai que também queria correr. Ele me orientou a não fazê-lo, para não me perder. Eu insisti.
Corri. Corri. Corri.
Uma certa hora cansei, e decidi voltar. Voltei caminhando, pois não tinha mais fôlego para correr.
Quando se anda, o destino parece mais longe do que quando se corre. E não encontrava mais meu pai. Tentei não me desesperar.
Mas a praia era muito grande. Havia muitas pessoas. Todos os prédios eram parecidos. Todas as barracas e cangas eram iguais às minhas. Mas, a minha nunca chegava.
Chorei. Não sei o porquê. Não era por medo de morrer, nem de perder minha família. Nem de levar bronca de meu pai.
Acho que era por medo de me tornar responsável. De ter que responder por minhas próprias decisões. Medo de me tornar adulto, antes mesmo de saber que eu o teria de ser, mais cedo ou mais tarde.
Não acho que virei adulto naquele dia. Demorou um pouco mais. Porém, nesse dia experimentei, pela primeira vez, estar sozinho no mundo, e isso assusta.
Na verdade, eu não estava sozinho. Meu pai estava me acompanhando. Estava de olho em mim. Ali, bem perto; cuidando. Mas permitindo que eu fizesse minhas escolhas.
Permitindo que eu “fizesse do meu jeito”.
E, quando eu não sabia mais o que fazer, ele apareceu.
Aquele não foi o dia em que aprendi a obedecer meus pais, nem a ouvir os conselhos dos mais velhos. Aprendi, naquele dia, algo simples: que até posso andar sozinho no mundo, mas tenho que enfrentar as consequências de querer andar sozinho.
Aprendi também que as minhas lágrimas tinham o mesmo gosto do mar.
O dia não foi doloroso por completo. Meu pai achou um peixe na água e o colocamos num copinho. O que me deixou feliz novamente e me fez me sentir um pouco maior.
Fiquei por um tempo sentado admirando aquele pequenino ser. Depois o soltamos de volta no mar, claro.
Fiquei pensando: Será que os peixes choram quando estão sós?
Agradeço a meu pai e minha mãe por terem me ensinado a andar sozinho no mundo, sem nunca ser sozinho no mundo.
23 de dezembro de 2015 (Presente no livro “Aprendizados de miúdo”)