Dois contos de Franklin Carvalho
Franklin Carvalho é jornalista e autor dos livros de contos Câmara e Cadeia (2004) e O Encourado (2009). Em 2016, o seu romance Céus e Terra venceu o Prêmio Nacional de Literatura do Serviço Social do Comércio (Sesc), e, em 2017, o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Autor Estreante com mais de 40 anos. O autor participou da comitiva brasileira na Primavera Literária Brasileira e no Salão do Livro de Paris (2016), eventos realizados na capital francesa, e foi palestrante também na Feira do Livro de Guadalajara (México — 2017) e na Festa Literária de Paraty 2018. Tem contos publicados na Revista Gueto.
***
O terceiro
Numa estranha manhã estávamos na agência dos Correios só homens, e Helena, uma mulher de meia-idade, bonita, chegou para tomar uma informação, gritando da porta para o atendente. Assim que ela se retirou os clientes na fila do balcão encetaram a conversa, primeiro em surdina, como se temessem a sua volta, depois mais relaxados.
— Mulher não dá sorte a marido! — Comentou um loiro, que tentava ser despachado primeiro.
— A qual deles? — Perguntou outro, mais atrás, um caboclo barbado com a camisa do Barcelona (ou era Paris Saint-Germain?).
— Já foram dois. O primeiro morreu de choque elétrico, o outro, de tétano — respondeu o gaiato que começara no assunto.
— E o atual também quase vai — gritou de dentro do balcão o atendente da agência. — Viajou com a gente para Barra e por pouco não se afogou no Rio São Francisco. Geraldão estava perto e puxou pelo braço.
— Olha aí o risco! – Retornou o loiro. Mas o torcedor do time estrangeiro deu outra opinião:
— Depende! Pode ser que pare no terceiro.
Com essa, o atendente baixou os olhos e mergulhou na papelada.
— Sim, os mistérios têm seus números, mesmo. Quem sabe? — Este era o vigilante da agência, um marmanjo avermelhado que pouco antes falava ao rapaz do futebol sobre saúde, ácido úrico e exercícios. No entanto, já havia se perdido a esperança de o diálogo tomar um rumo racional. O Saint-Germain (ou era Barcelona?) chutou:
— É como a moto dourada que o Raimundinho queria vender. O dono morreu numa batida e a moto não sofreu nada. Ficou para o Raimundinho negociar.
— Que foi que teve? — Indagou o loiro, tranquilo com a fila andando mais rápido.
— Um comprador da capital veio buscar, mas o carro dele virou na estrada.
Como a história ameaçava perecer, este que vos fala, escalado para ser apenas testemunha dos fatos e encaminhar discretamente uma postagem de livros, não se conteve e entrou em campo:
— E a moto, não foi vendida?
— Raimundinho desistiu de passar adiante — voltou o Saint-Germain. – Mas despertou a vontade de ser motociclista. Não naquela moto, assombrada. Resolveu ir em Feira de Santana buscar uma nova. Morreu na volta, de acidente de trânsito. Se houvesse aceitado a dourada, tinha encaixado na posição certa. Seria o terceiro da fila. Número tem muita importância!
O vigilante, após fazer complicados cálculos mentais, concordou com aquela súmula.
Chegou a minha vez de ser atendido. Vida que segue!
*
De como Romeu Raizeiro deixou de ser curandeiro
Eu vi aqueles três elementos aparecerem ao meu lado, eu deitado no meu quarto, na cama. Pareciam cachorros, dois pretos e um vermelho. As presas eram como facas afiadas, as bocas compridas de jacaré.
Eles roeram todo o meu corpo do pescoço para baixo e levaram o resto pelo sertão adentro, atravessaram o Rio São Francisco até chegar em Sergipe. Esse caminho demorou muito no mato de noite.
Então me jogaram no centro do terreiro de um pai de santo que eu não conhecia, e já estava tudo pronto. No chão tinha velas e duas galinhas mortas. O pai de santo mandou eu comer uma galinha, que assim eu ia ganhar todo o dinheiro aqui da cidade, dessas roças aí afora. Ia ficar rico, só teria que perder tudo três dias antes de morrer.
Eu desconfiei daquela ideia. Disse a ele que só a Deus eu sirvo, e não comeria galinha nenhuma. O sujeito me chamou de teimoso e ordenou aos tais cachorros que me trouxessem para casa e, quando chegassem, acabassem de me matar.
Novamente voltamos, atravessamos o rio e a mata e paramos aqui, mas não era o mesmo dia que saímos. Era a época de anos atrás, velhas estradas de barro que nunca conheci, casas antigas de palha, plantas altas que já não existem e um velhinho no meio delas, um sujeito magro, de costas, com as mãos levantadas ao céu.
Os cachorros se diziam: “Vamos desviar do Atrapalha”. O velho ordenou que o chão se abrisse e os cães descessem pela fenda. Falou isso outra vez e a fenda abriu, mas os bichos quiseram voar, e voando mesmo estouraram como foguetes.
O santo, que era esse “Atrapalha”, me disse que eu queimasse todas as minhas coisas de curandeiro conforme me lembrasse delas. “O resto o dono virá buscar”.
Assim aconteceu. Acordei na minha casa e, de duas vestes que encontrava, tirava só uma para queimar. De ferramentas e velas não foi tudo para o fogo, nem todas as folhas, nem todas as fitas. Dava-me pena, compreende?
Mas no dia seguinte recebi a visita de um homem a quem eu devia, curandeiro ele também, e lhe entreguei o resto das coisas da casa, menos as imagens intocadas da devoção, de simples reza… Na mesma hora esqueci tudo.
Eu, que sacudia das pessoas os maus ventos, tanto invocado como não, esqueci todo o preparo, esqueci os banhos, os fundamentos. De uma hora para a outra. Assim que eu parei pararam também os meus filhos de santo, e nem por pilhéria me meto hoje a curar na linha branca.
Larguei a Linha Branca das Almas, porque havia invejosos da mão esquerda, e eles estavam de olho em mim, querendo me dominar.
O que eu tenho hoje é isso: essas raízes, essas garrafadas que eu vendo, esse litro de mel e três livros de remédios de plantas. E a simples devoção, simples reza. Meu nome é só Romeu, não é mais “Pai”, não tem nada disso. E se precisar eu mudo de nome de novo, a qualquer hora, nem registro de nascimento vale. Porque nasci sem registro, sou antes um homem, só isso. Ou tudo isso…