Dois contos de Gustavo Marcasse
Gustavo Marcasse é dramaturgo e artista visual, com peças apresentadas em festivais e mostras de Curitiba e outras cidades do estado do Paraná, participou da mostra oficial de 2019 do “Festival de Teatro de Curitiba” com a peça “Fedra em o Fantástico Mundo de Hipólito”. Formado em processos fotográficos pelo Instituto Federal do Paraná, atualmente trabalha aproximando processos teatrais de sua produção visual, mesclando diversas mídias ao processo, um misto de desenho, colagem e ensaio teatral, um “laboratório de aproximação de coisas”.
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no sonho seu pai pedia pra equilibrar uma xícara com o apoio da alça
no sonho seu pai pedia pra equilibrar uma xícara com o apoio da alça, formando um ângulo entre a base e a mesa, dizia que aquilo decidiria o rumo das coisas. acordou já esquecendo do sonho, pois não estava agendado lembrar. levantou para o trabalho. m. trabalhava em casa e era hábil em gerir seu tempo, talvez não fosse hábil para si, o que pode não ser bom, mas em algum nível, em alguma esfera, em nome de algo, m. sentia que aquilo era bom, era bom pra algo. o que é verdade, mas não prova ou quer dizer nada e talvez até queira, mas com pouca força, então nem diz de fato.
m. sabia que da cama até o banheiro seriam nove passos, o que é a média se pensarmos que as opções variam entre viver dentro do banheiro ou precisar de um pequeno veículo, como um carrinho de golfe, para ir até lá, tudo estava estrategicamente colocado ao longo dos nove passos, no caminho até o banheiro, m. recolheria diversos pequenos objetos ou completaria pequenas missões necessárias para o dia, ligar aparelhos que se ligam durante o dia, desligar os que se ligam a noite, mover ou não conscientemente objetos de um lugar pra outro usando as extremidades da parte superior do corpo, coisas que pessoas fazem. m. se orgulhava de ser um sucesso em produtividade, mas tudo falhou miseravelmente.
como uma máquina, exageradamente hábil, que executa automaticamente movimentos, m. havia realizado suas pequenas missões sem se dar conta que fracassara terrivelmente em todas, o movimento estava ali e era correto, mas as coisas pareciam não estar do jeito que antes estavam, nem mesmo haviam ficado da forma como deveriam ficar, as coisas estavam ali? – fracasso, pensava e m. não sabia por que, não sabia que vivia num sistema menos seguro que sua certeza. não sabia como era hábil em interagir com o vazio.
– hoje não tomo café da manhã e assim faço tempo para resolver esse mistério. m. sabia o que tinha de fazer, acreditava saber, saber conscientemente é sua devoção. – tenho de fazer de novo. fazer de novo, cuidadosamente, tudo de novo e sem medo da repetição, é a prática prática prática prática que leva a perfeição. m. volta a deitar na cama, mas toma um caminho diferente pra que a volta não comprometa ainda mais o trajeto entre a cama e o banheiro, então desce, como veio ao mundo e sem entendimento, treze andares, contorna a quadra, com uma corda, escala o prédio, entra pela janela do quarto e se coloca confortavelmente na cama na mesma exata posição em que havia acordado.
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a velhinha que cuidava da Árvore da Vida
a Árvore da Vida vive agora numa sacada no bairro do bixiga em são paulo. num pequeno vaso, mas em bom lugar com relação ao sol, ela vive com uma sra. já de idade bastante avançada entre um pé de espada-de-são jorge e um de abacaxi-roxo. a semente, última da antiga última árvore, chegou calculada pelo vento descendo em um vaso vazio de planta, um vaso só de terra, fazendo nascer onde não havia pessoa nenhuma plantado, e quando onde ninguém planta, nasce, a coisa é muito séria mesmo. é da natureza, escolher aleatoriamente muito melhor do que nós, que acreditamos não estar escolhendo aleatoriamente.
o pequeno pé de Árvore da Vida, não mais alto que o joelho de alguém baixo, é a única coisa que mantém viva a vida como nós a conhecemos. é altamente necessário distinguir, que a Árvore da Vida, a planta em questão analisada por nós hoje, não mantém o “estável” da vida cotidiana, isso é trabalho muito que humano, a Árvore da Vida, caso o nome não seja já bastante autoexplicativo, sustenta a vida enquanto acontecimento do movimento em nossa realidade, é ela a narradora.
– o que a Árvore da Vida está fazendo em nosso planeta? – você me pergunta.
– vivendo com uma velhinha no bixiga – eu respondo.
– não, não. como ela veio parar aqui?
– pelo vento, com a ajuda do espaço, antes disso sendo impulsionada por forças que nossa linguagem não é capaz de traduzir durante a realidade.
você fica insatisfeito com a resposta, eu falo que então não entendi a pergunta, você pensa que eu deveria ter imaginado o princípio dessa história, eu penso que jamais seria capaz disso. enquanto a gente discutia aqui, a velhinha que cochila sentada ao sol quase acorda e a Árvore da Vida faz um não movimento que deixa cair uma folha.
pobre Árvore da Vida que vai mal. não por má escolha da natureza em relação ao plantio, nem por descuido dessa velhinha, olha pros vasos, todos com casquinhas de ovo, o descuido é culpa de tudo que vive e vive mal, fazendo mal, viver mal muitas vezes não é culpa nossa. é também relevante dizer que sobre a morte da Árvore da Vida, alguns são muito mais responsáveis que outros, mas o ponto principal, se é que algo é secundário sobre alguma coisa que diz respeito a isso, é que a árvore da vida vai morrer quando o calor se afastar da próxima vez,
estamos em maio
são os últimos dias quentes
são os últimos
é um frio terrível.