Dois contos de “matarasa, covagrande”, de Thiago Costa
Thiago Costa é historiador. “matarasa, covagrande” (Rizoma Projetos Editoriais, 2022) é seu livro de estreia na ficção. E-mail: thiagocosta248@yahoo.com.br
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Inquietude, experimentações em torno de
Tranquei a porta por fora. Prendi a respiração, suspirei. Segurei as chaves entre os dedos, atenta aos ruídos de dentro. Desci as escadas espiraladas, com pressa, em vertigem, distanciando-me de mim mesma a cada passo descendente, evitando a queda, pelo caminho sinuoso, tortuoso, longuíssimo, que serpenteava ao redor de um eixo inabalável, impassível, inquebrantável, mas perene. Onipresente, o eixo. Atravessei o corredor estreito, abafado, vazio, úmido, penumbroso, frio, concreto, de paredes emboloradas, antigas, de pintura remendada, com o quadro de conquistadores espanhóis, corredor indefinível, sem forma, ampliando-se em milênios, em silêncio. Era a última vez, não era a última vez, eu acreditava, eu queria acreditar. O barulho dos meus pés assimétricos em sapatos de salto médio preenchia o espaço, denunciava minha posição, minha fingida indiferença, a fadiga. Saio do prédio. Na calçada, o cinza me possui. Eu hesito. E a hesitação ecoa pela tarde. A aragem branca gruda na pele. Levanta meu cabelo recentemente lavado, embebido em um perfume que não era o meu. Eriça meus pelos curtos, íntimos, domesticados. Para os olhos, para a boca. É setembro. É inverno nos países do sul. O vermelho ficou sobre a cama. Propositadamente. Não guardei o seu nome, não decorei o seu rosto. Perdi a sua voz. Não passei o cadeado no portão de ferro gradeado, em ruínas, que isolava o edifício idoso do resto do mundo. Fiz questão de esquecer.
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O menino e o chão do mundo
Subiu o muro como algo proibido. Na contramão. Ligeiro. Era um menino das ruas, das travessas. Ocupava os interstícios, gostava das fissuras. Sujo, remendado, molambento. Puído. De mãos lanhadas, pés ralados, coberto de terra, seca, de suor, seco, tomado de frieira, das tardes inteiras perdido nas alamedas, perdido em si, nas brechas exteriores. Subiu o muro acelerado, como um gato rueiro, um fugitivo, dois palitos, pá-pum, aqui, ali, ágil, uma ratazana dos esgotos abertos. Com cuidado, em silêncio, desviando-se dos cacos de vidro, dos tijolos quebrados, equilibrando-se sobre as nádegas magrelas, para não cair. Respira. Camuflava-se para que a mãe não visse, para que os vizinhos não notassem. Ninguém sabia. Era um desconhecido, um ignoto. Subiu e sentou. Começo da noite, noitezinha. Olhou lá de cima os sulcos no asfalto antigo, desmanchando-se no caminho, desmanchando o caminho desde a época da ocupação, da formação do bairro proletário. Levantou a cabeça, olhou ao redor. Viu os postes, a luz amarelada, esmaecida, fraquejando, da lâmpada transparente, intermitente, reduzindo aos poucos as cores da tarde vermelha, sombreando o entorno. Notou o semblante decadente das casas, da calçada. A indiferença do concreto, ruindo, a própria ruína. A cal, branca, como o branco do olho. Como o pó. O tempo. Olhou o tempo, penetrou dentro do olhar, oco, do interior fundo misterioso, viscoso, do tempo. Estava tudo muito quieto, mundo calado. Evanescente. Experimentou o gosto na boca da rigidez das paredes, sobre a língua, o sabor agridoce dos catarros, das idades esgotadas, das doenças. E então percebeu, em uma fracção de segundo, incontável, desmedido, que o universo inteiro que não era senão extensão e itinerário único de passagens que convergiam em direção à sua própria casa, um barraco montado no chão impalpável, oculto. Sentiu-se um pouco sozinho. Teve então, de repente, consciência da solidão. E encolheu. A calmaria pesava no peito, um deserto amargo, árido, arranhava sua garganta, a ausência grudava na pele. Foi como uma miragem. Não conseguia contar as horas, o acúmulo do esforço, mantido em segredo, de alcançar a plenitude. Nas mãos de unhas encardidas, no corpo miúdo. Naquele instante, intangível. Invisível. Vago, marginal. A revelação de esclarecimento transcendentes. Abriu os braços num abraço. Para afastar os pensamentos. Como se pudesse tomar tudo aquilo no colo, toda dor que existia, a saudade de ser o ser que era e que nunca fora por completo afinal, um menino. Mordeu os lábios. Limpou a secreção do nariz. Engoliu a tristeza e a vontade de chorar. Desceu. Cabeça baixa. Atravessou as estradas, as veredas, contornou os carros, as esquinas, os homens, os animais, de mansinho. A mata crescia. Parou diante do portão antigo, enferrujado. Tocou as grades. Dali via a janela e o interior por onde acompanhava a chuva em dias de chuva. Ao longe, grandes prédios cinzas. Amplos, soberanos, na cidade, além. Muito além, dos pontos luminosos. Dos borrões entre as estrelas. Brilhos efêmeros de sonhos distantes. Era só uma criança. Era, então. Só. Mais um. E o céu não estava ao alcance.