Dois contos e um poema de Diego Soares
Diego Soares nasceu em 1990, em Bangu, na cidade do Rio de Janeiro. Psicólogo, mestre e doutorando em Psicologia Social pela UERJ. Interessado em diálogos que descentrem o campo disciplinar da psicologia, encontra na literatura e nas artes visuais parcerias potentes para pensar identidade, raça, gênero, sexualidades e narração. Publicou recentemente o conto “Melancolia ensolarada”, na coletânea de contos Um pé de ancestralidade (2021), pela Editora Malê. Desembrulho (2022) foi seu primeiro livro publicado pela Editora Urutau. Mantém a página @pedregulho.s desde 2017, no Instagram, onde compartilha suas experimentações em artes visuais.
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ESPERANÇA
Esperança entra pela janela do quarto. Para no chão de taco. A criança assiste ao pouso do vulto verde. Corre para pegá-lo, pensando ser folha desgarrada de árvore. O dia venta. O bicho salta. A perninha fica, presa no dedo indicador da pequena. Ela a posiciona na frente do nariz e cheira. Lambe com a ponta da língua, cautelosa e tímida. Sente cócegas. O gosto não é bom. Solta. Perde o pedaço do inseto. Perde o próprio inseto entre as muitas coisas ao redor. Tudo convoca a criança, inclusive a sala, o banheiro, a cozinha. Esperança respira aliviada, ainda guardando a sensação da perda arrancada.
O pai dá uma olhada no quarto. Percebe a esperança murcha, sem ânimo para coisa nenhuma. Abaixa, apoiando os joelhos, e aproxima, sem tocar, os dedos. O bicho esperneia, mas não corre. Não pode. As asas não abrem nem batem. O homem identifica a ausência de parte sua: uma das pernas traseiras, justamente a que empurra o solo e promove o impulso. Passa rapidamente os olhos nos arredores, mas não a encontra. Arria a cabeça, colando o ouvido a um palmo do inseto. Tenta ouvir algum lamento seu. Perto de conceder sonoridade à cena, um choro inunda o ambiente. Abandona esperança. Sai do cômodo para retornar, em menos de um minuto, com a criança no colo. Esta soluça brando, já se despedindo do pranto. O pai pega agenda na mesa de cabeceira e destaca uma página. Desce, cuidando para não desequilibrar. Desliza o papel perto do bicho, esperando aderência. Este pisa, sente a gramatura e sobe na brancura. Segue transportado até a varanda, onde é deixado entre um antúrio e uma samambaia. A composição verdejante o camufla.
Impedida de sua capacidade de propulsão, esperança descansa. A sombra das folhas tanto protege quanto oferece companhia. A todo momento, esquece e estica o membro inexistente. Sente a força do movimento. Vislumbra o sentido do deslocamento. Permanece. A folhagem brinca de acalmar, mexendo melodiosa. Na hipnose do tempo, esperança medita sobre os desejos que ensejam visita. Escolhe um. Deseja a queda de uma folha pendida acima. A brisa vem, balança o limbo e vai. Quando volta na direção contrária, rompe o pecíolo do caule. A folha aterrissa na esperança. Escorrega pela superfície lisa do bicho. Deita ao seu lado. Fica.
O verde das duas se equipara à primeira vista. Tal é a maneira do disfarce que a mãe não percebe a boa sorte e pisa em cima. Esperança agoniza. Quando desabafada do pé que esmaga, respira, ainda viva. Seu estômago rompido inicia a contagem para o fim de seus dias. No que inclina o regador, a mulher alcança a diferença. Uma folha morre com as bordas amarelas, um inseto morre completamente verde. Pega-o com delicadeza, contornando o temor de que pule abruptamente. Cava um pequeno buraco na terra que nutre o lírio e derrama esperança lá. Cobre seu corpo e pede desculpas. Rega sem motivo.
Esperança não brota, não dá raiz, não se espalha por entre as ramificações da flor. Não é planta. Não é semente. De seu abdômen escorre líquido viscoso que não alimenta. Ela vai depositando nada além das próprias vísceras na terra. Quando termina, ainda não maturou. Continua verde.
A criança esfrega a chupeta na toalha de mesa e coloca na boca. Suga o gosto de açúcar. O pai não repara. Anota os itens de mercado enquanto sacode a pequena nas pernas. Ignora o cheiro que vem da fralda, ensaiando expressão de surpresa para quando decidir trocá-la. A mãe procura o que falta na despensa. Cantarola na cabeça uma música sem certeza da letra. Repete um mesmo verso, designando-lhe finais diferentes. Alguns sequer rimam. Grita Café! porque lembra que o pacote está para acabar. Finalmente rima. Nem ela, nem o homem nem a criança sentem a presença do mau presságio, assim como não sentiram a do bom. Veio e foi quase sem ter ido e vindo.
A perninha da esperança, ciente da irrevogável separação a que foi sentenciada, resta acomodada entre as piaçavas da vassoura. Estas ofertam parceria, junto da poeira colhida nos móveis e dos objetos invisíveis a olho nu. A intimidade estabelecida entre eles por pouco não os faz coisas parentes. Todavia, a familiaridade logo se dissipa devido à ação da memória sensorial. Vez ou outra, a perninha esquece e se alonga, acreditando ter ainda uma vida para alavancar adiante.
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PARDAL E PEDRA
Bateu a cabeça. Do encontro nasceu galo, que logo virou ovo roxo, de onde escorreu fio de sangue. Pardal longe cantou essa pedra e foi ver que era. Bebericou, piou largo e foi-se voado. A velha chegou lenta, sentou na banqueta e pôs a mão quente de erva e óleo. Fez palavra rezada e quietou. Ordenou que cessasse choro minguado. A água salgada percorreu o rosto até pingar no colo. Olhou, pelo embaço, o cordão da vó. Pardal espiava da mureta de companhia de mais dois. Catava semente no vão no telhado. Conhecia o menino de nascença. Tomara por afilhado de consideração. Isso porque o menino tinha hábito de ajuntar miolo no quintal. Fazia bolotinhas e arremessava. O pardal assustou de começo. Depois, já sem vergonha, bicava da palma da mão. Piava estreito no ouvido, passando recado de que era agradecido. O menino sentia cosquinha, remexendo os dedos. Ficaram íntimos. A velha desaprovava a distração. Passarinho distrai porque voa e abre espaço grande demais pra olhar. Menino não alcança, mas tenta. Corre a vista em tudo que dá no céu e, cego de sol, tropeça em raiz de mangueira, manga, madeira. Rala joelho, cai de bunda. Ainda por cima faz choradeira. Nem devia. Já te falei pra olhar pro chão quando andar. Vó fala, menino engole. Pardal volta pra assuntar, piando largo. Quando alarga o pio agudo, quer dizer que faz caçoação pros outros pardais. Caçoa não querendo mal, mas porque acha graça das topadas do menino. Só sabe que é isso de cair porque precisou voar, e mesmo assim nunca encontrou o chão no fim da queda.
Vó, queria ser passarinho — sem levantar a vista, menino olha o cheiro de gordura nos cocós do cabelo e na pele da vó.
Que que sabe de ser passarinho, esse menino? — velha cospe um desajeito na garganta e esfrega as palmas, pondo a mão quente de volta na testa.
Ele voa o céu todinho, sem medo nem arrepio. É pequetitinho, mora em árvore, bica em vez de comer, canta em vez de falar, e sabe caçoar.
Que é isso de caçoar?
Caçoa de mim piando pros outros porque tropeço demais.
Tropeça porque num olha.
É que tô querendo é voar.
Mas chão é pra andar. Precisa saber olhar, reparar as miudezas cá de cima com os olhos, e precisa olhar pra frente também pra saber onde vai. Se repara bem, capaz de achar até moeda perdida.
Dá pra comprar bala! — menino anima.
Mas pode ser que seja só uma pedrinha que parece alguma coisa. Aí você guarda e faz bênção. Lava n’água corrente e depois deixa secar no sol. Depois que passa por lua nova, faz reza pra que força de menino fique na pedra.
Pra quê serve, vó?
Protege menino.
Aí num caio mais?
A velha pega o menino pelo olho.
Isso de cair não precisa proteção, só atenção. Pedra rezada protege de mau espírito.
O menino olha pardal.
Passarinho tem espírito?
A velha olha pardal desconfiada.
Num sei.
Pardal pia pio farto pro sol. Acha graça do querer saber do menino. Só sabe que é isso de ser porque precisou cantar, e mesmo assim nunca encontrou o chão no fim da pedra.
*
BARRIGA
passo o pé na barriga
da cachorra virada para cima.
ela fecha os olhos
como quem encara luz forte.
vou e volto com o pé
no espaço marrom manchado
cercado de pelos cor de chocolate.
a barriga é uma ilha com mamas.
a cachorra ergue os olhos
úmidos de sono,
tensionando o pescoço.
deita e esquece o motivo todo.
a barriga enche
e esvazia.
enche e esvazia tímida.
ela respira a vida sem agonia.
escorrego o peito do pé
na dobra de perna com tronco.
a quentura pede demora.
mexo os dedos para acomodar.
permanecendo
vou reconhecendo
o movimento
do esquecimento.
enquanto deixo,
o tempo passa.
não lhe devo nada.
os dedos mexem para parar.
penso e esqueço.
a tarde diz sem dizer:
melhor mesmo é ser cachorro,
que não tem horas pra contar.
a cachorra ergue os olhos,
úmidos de sonho.
olho de volta.