Dois contos e uma crônica de Neto Costa
Neto Costa. Co-fundador do Coletivo Audiovisual e Cultural Zebra; ganhador dos prêmios de “Melhor Produção Mato-Grossense”, segundo o júri popular na Mostra Audiovisual da América Latina (MAUAL) e “Melhor Ficção”, segundo o júri oficial na 3ª Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso com o curta-metragem Como Ser Racista em 10 Passos, de Isabela Ferreira
Tocador de cavaquinho desafinado e, nas horas vagas, visito os melhores sambas da cidade. Escrevo um pouco sobre as coisas que vivo e só frequento locais que permitem a entrada de chinelo.
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Eu quero morrer num domingo!
Quando acordou naquela quarta-feira, notou algo diferente em seu corpo. Parecia mais leve, sem as dores na costa e o incômodo no joelho parecia não existir mais. Mesmo assim, era dia de trabalho. Levantou, tomou seu banho, fez seu café e tomou numa só goleada. O líquido quente não queimou sua língua.
Quando subiu a rua, em direção ao ponto de ônibus, passou por diversos conhecidos. Cumprimentou a maioria, mas obteve nenhum retorno. Ninguém a viu.
Estranhou mais ainda quando chegou em seu trabalho. Tudo estava igual, mas diferente. A casa, que costumava ter muita vida com crianças correndo, adultos cantando ou ouvindo música por todos os cantos, estava vazia, sem nenhuma alma por ali. Um clima que, mesmo para ela que adorava os seus momentos solitários, era incomum.
Ainda assim, o trabalho não podia esperar. Lavando a louça, divagando pelos seus pensamentos, voltou ao antigo pensamento, que era uma teoria que carregava contigo: ela não aceitaria, de forma alguma, morrer num dia que não fosse domingo.
E tinha suas razões para isso. Era inconcebível morrer num dia de semana e chegar ao céu cansada, após um dia estressante de trabalho. Onde já se viu conhecer Deus ou quer que seja, o criador de tudo isso, enervada, deprimida e desanimada após servir durante todo o dia.
Ainda, imagine passar pelo purgatório dessa forma. Como poderia resistir aos castigos do pecado?
O melhor deles, que nunca deixava de passar pelas suas ideias, era o fato de ter a possibilidade de morrer deitada, com tranquilidade e na paz da sua casa, construída com muito suor para momentos importantes (e outros, nem tanto) de sua vida.
Por tudo isso, tinha seus motivos para querer morrer num domingo.
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Quando eu falo, é sobre medo
Quando eu tinha 7, achei que morreria rápido. Dez anos parecia uma eternidade. O mundo era minha rua. A parte escura era tipo a morte. Não me imaginava chegando aos 17. Um número que eu nem sabia ler direito. Pensava que a vida era o claro e o fim era escuro. Sobrevivia como mandava o dia a dia. Naquela fase, ainda achava que o Deus deles pudesse ouvir minha voz.
Eu não pensava a morte como ela é. Pra mim, apenas parecia que não dava pra viver tanto tempo. 7 anos já era um tempão. 17 então…
Vivíamos o cotidiano, sem pensar no amanhã, fazendo tudo pela primeira vez, mas como se fosse a última. A vida era simples. O tempo passava devagar. Admirava as nuvens, corria atrás das pipas, jogava bola e via o entardecer. O vento fresco na cara quando andava de bicicleta e corria pela rua. Só tinha medo do escuro.
Completei 17 sem tempo para ter medo. Era um anônimo cheio de coragem. Pavio curto. Não tinha dó. A vida passou rápido, afinal, tinha muito pra viver. Pisei no acelerador e passei por cima de quem entrava na frente, inclusive do medo. Pé na porta, soco na cara. Pisada no pescoço para ter certeza. Matei o medo, mas passava fome.
Era puro ódio. Me sentia um rottweiler rosnando para o ladrão.
Cheguei aos 27, sou um vencedor. Quem vem de onde eu vim e da forma que eu vim, tá ligado. Continuo sem saber se Deus me ouve, mas sigo fazendo minhas preces para quem quer que seja quando deito a cabeça no travesseiro.
Meu horizonte se ampliou. Sinto que o mundo tenta pisar em mim e no que conquistei. Talvez, por isso, o desprendimento. Como Bruce Lee dizia, sigo sendo como a água.
8, 9, 10 horas por dia e vendo meus sonhos ficarem cada vez maiores. Ou será que eles estão mais perto?
Com 27, meus medos são outros. Agora, tenho certeza de que o fim é escuro e solitário.
Possuo alguns dígitos na conta. Um pouco de criatividade e felicidade. Uma reputação na mão. Tento não me iludir com o que conquistei e continuar correndo para frente. Às vezes, em meio ao sofrimento, a felicidade me visita.
Não posso me perder. Estamos falando sobre medo. O meu é perder tudo isso, ficar procurando respostas e me afundar no fracasso. Sentir nas costas o peso da derrota deve ser muito difícil. Fico pensando como a Rihanna deu a volta por cima. O que a bad girl sentiu quando viu aqueles números? É nessas horas que eu seria capaz de puxar o gatilho.
Estamos no paraíso da pobreza. Outro dia, pegaram meu mano. Soco, pontapé e pauladas, que pareciam chicotadas. Esse é o meu medo.
Se eu pudesse, enrolava o medo. Acende, puxa, prende, solta. Faria amizade com esse impostor, da mesma forma que fiz com a vida. Caminho com ela, mas a morte continua a frente, junto com ele. O medo me persegue e, ao mesmo tempo, está sempre na minha frente.
Tô ouvindo alguém gritar meu nome. Parece o medo. Tenho que ir abrir a porta dos meus sonhos para ele.
*
O volume das ruas
A rua me chama…
Pra mim, não existe a possibilidade de viver a vida sem considerar a ideia de estar na rua. Estranhamente, nestes tempos de clausura, sem poder viver, a morte nos persegue, mas estar vivo é um ato de resistência.
A gente existe por amor ao futuro que virá. Uma nova era, sem pandemia e com novas maneiras. Nesse futuro, aparentemente distante, eu quero dar muito mais valor ao que as ruas me oferecem. Dar valor à humanidade de cada um que nela habita.
Veja, não estou menosprezando a importância de um lar, pra onde podemos voltar. O que digo aqui é mais profundo.
As ruas são as artérias do mundo. É gente que corre, cada um no seu ritmo. São as entidades e os santos, todos juntos, em harmonia.
Em cada loko, morador que nela habita, vejo Deus, Exu, Xangô, Zé Pilintra, Nossa Senhora, Iemanjá.
Tento enxergar o que a sociedade não vê. Atender os chamados das ruas é o que mantém meu coração pulsando.
O dia que eu fechar os olhos e deixar de enxergar as ruas, estarei fadado ao fracasso.
A rua me chama e eu respondo.