Dois microcontos e quatro contos de Igor Maria Sales
Igor Maria Sales nasceu no Recife em 11 de fevereiro de 1992. Está prestes a publicar o primeiro livro de contos “O que choram os mortos”
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Eramos muitos
Eramos muitos. Fomos ficando pelo caminho; adoecemos, nos acidentamos, perdemos o rumo, perdemos o transe, entramos em paranoia. Contávamos milhões, milhares, centenas e dezenas de velhos frágeis. Meninos cegos guiando velhos paralíticos.
Eramos como as ondas do mar e areia da praia. Perdemo-nos e ninguém soube voltar. Eramos muitos, hoje sou só eu. Eu que nem sei quem sou.
*
A dama da noite
Geraldo assentou o novo piso de porcelanato, instalou as portas pivotadas, as bancadas e pias de mármore; olhou pela janela e viu na estreiteza entre o asfalto e o mundo, o tremular do ar. Lavou o rosto para o almoço. Homem acostumado que era, tirou a camisa, tomou caldo quente e uma garrafa de água gelada e com gelo. Depois um café pelando.
Subiu até o terceiro andar da mansão e viu uma mulher passando pelo corredor. Chamou, ela não notou. Irritado foi atrás da intrusa e ao entrar no quarto a mulher virou-se para ele. Emudeceu. Vestido e cabelos negros, longos e flutuantes. Os olhos o chamavam.
– Quem é você, senhora?
– Sou a última vista de todo homem.
– Diga, senhora. Quem é você?
– A morte, Geraldo. Cheguei .
– Pode seguir, senhora. Que tenho obra para findar.
– Nem obra, nem essa, nem outra, Geraldo. Vai-te agora.
Ela estendeu-lhe a alva mão. Suave, delicada como a da fidalguia que nunca trabalhara. Geraldo tocou-lhe os cabelos, deu um passo adiante e caiu no poço do elevador.
*
Jurandir nos infernos
– Próximo – chamou o diabo anão – Nome e causa da morte.
– Jurandir Silva. Morri de caganeira.
– Que jeito de morrer, meu filho. Morreu como viveu?
– Como?
– Pela bunda, rapaz. Pelo visto você é daqueles lerdos, não? – O diabo abriu um caderno enorme de capa de couro de porco. – Vejamos, Jurandir Da Silva.
– Silva, só Silva, senhor.
– Aqui. Número do protocolo de desencarno, por gentileza.
Jurandir procurou nos bolsos, nada. – Número de protocolo? Me disseram para pegar a fila e estava tudo certo.
– Tudo certo para quem? Pegou a fila errada. Sabe ler? O que diz essa placa? – Apontou para o grande letreiro vermelho.
– Birô de apelação.
– Então, como quer apelar sem o protocolo de desencarno? Pegue aquela fila ali.
Jurandir saiu apressado para a fila indicada.
Chegou ao guichê.
– Data de passagem?
– Quatorze de julho de dois mil e vinte e dois.
– Tem o comprovante?
– Ninguém me deu.
– Você acha que aqui alguém dá alguma coisa? Precisa correr atrás, rapaz. Mais uma coisa, agora você não pode entrar na fila principal. Terá que passar aqueles montes ali, vê? Então, depois deles terá uma fila para quem morreu no último ano, você pega a próxima, a de quem morreu há dez anos.
– Já estou aqui a tanto tempo?
– Isso aqui é uma loucura, meu filho – disse o outro diabo – um dia desses tive uma dor de barriga e atrasei a fila em quinze anos.
– Muito obrigado.
Lá foi Jurandir. Passou os montes e entrou na fila que mandaram.
– Me desculpe, amigo. Você tinha que ter entrado na fila dos quinze anos. Quem te passou essa informação?
– Foi o teu colega ali que autentica o protocolo de passagem.
– O diabinho cinza? Uma vergonha. Acredita que uma vez ele dormiu dentro do armário e atrasou a fila em treze anos? Logo no tempo que o patrão implementou uma política de incentivo e ninguém bateu a meta por conta daquele corno.
– Pode me dizer como conseguir esse maldito comprovante? Preciso seguir viagem.
– Não se preocupe. É bem simples. Tá vendo aquela fila ali? Isso, a que tem um cadeirante, é lá que você precisa ir. Última coisa, se você não tiver o laudo do legista não vai conseguir emitir o comprovante.
– Porra. Que laudo? Eu já não estou aqui?
– Meu amigo, norma é norma e o procedimento aqui é seguido à risca.
Jurandir procurou por todo complexo de edifícios infernais e não encontrou o setor médico ou um doutor legista para lhe passar o laudo de morte. Encontrou o guichê de informações com uma diabinha muito simpática.
– É simples. Lembra por onde andou antes de chegar em nosso complexo? Não? Isso acontece quando passam mais de cinquenta anos aqui dentro. É simples, você vem do cemitério. Fato curioso, senhor, quando é enterrado lá em cima, é desenterrado aqui embaixo sabia? Meu primo é agente de apostas e aqui no inferno temos um bolão milionário; os diabos gostam muito de apostar naqueles que virão para cá.
– Obrigado, moça.
– Eu sou homem.
Jurandir saiu correndo. Foi fácil encontrar o caminho para o cemitério, uma multidão seguia para lá. Logo que chegou ouviu gritarem o seu nome.
– Jurandir Silva, finalmente te encontrei. Rapaz, você não sabe quanto dinheiro me fez ganhar. Apostei tudo em você.
– Quem é você?
– Não lembra de mim? Na verdade nunca me conheceu, mas saiba que mexi meus pauzinhos para te ver por aqui, meu amigo.
– Então, você é o culpado?
– Que culpado o quê?! Você veio com os próprios pés, eu só dei um empurrão.
– Então vai me ajudar com o laudo.
– Claro, está bem aqui comigo. Olhe, vou carimbar e assinar aqui. Você precisa da assinatura do agente responsável pela transferência e do legista. Acontece que ele só carimba examinando a alma do defunto. Sabe que ainda carrega as marcas da passagem?
– Então é por isso que estou todo assado?
– As vezes os demônios se aproveitam quando vocês chegam, sabe? Corpinho novo e vocês nem oferecem resistência. Encare como um rito de passagem e não guarde rancor de nós. Vá lá, o doutor te aguarda.
Jurandir viu um calendário no consultório do doutor, marcava o ano de dois mil cento e cinquenta e quatro.
– Doutor, preciso que assine o meu laudo para seguir o protocolo e ir para longe desse lugar terrível.
O médico pegou o laudo, leu, e pediu para que Jurandir abaixar as calças.
– Olhe, meu filho. Você tem outras marcas aqui que são causadas por outra coisa. Não posso atestar diarreia como causa da morte pois o local do crime está contaminado. Você irá no nosso cirurgião, ele é o único que consegue reconstruir o corpo e deixar do jeito que chegou aqui.
– Não tem outro jeito?
– Claro que tem, mas é melhor seguir a minha recomendação. Vai doer menos.
Jurandir Silva já perdera os sapatos, as calças estavam rasgadas, a camisa imunda mas foi recebido pelo cirurgião que remodelou o corpo e deixou-o como recém-chegado. Ele retornou ao legista.
– Dois mil cento e oitenta. O tempo aqui não espera por ninguém.
– Certo, deixe-me ver. Interessante.
– O que é interessante?
– Você comeu peixe no dia anterior a sua morte?
– Acho que sim. Por que?
– Porque cometi um erro no primeiro laudo. Você teve diarreia mas o real motivo da sua morte foi uma espinha de peixe que passou lisa pelo intestino mas virou quase no fim do caminho e causou a hemorragia que te matou. – depois de uma longa pausa – não se preocupe, eu mesmo resolvo isso. Feito. Agora vá até o complexo jurídico e siga o caminho.
Jurandir retornou ao complexo e foi impedido pelo segurança, só entra vestido senhor, vá na lojinha. Jurandir viu uma loja de aluguel de ternos na frente do complexo.
– Como pagarei?
– Você vai lá dentro não? – perguntou a vendedora – então você resolve esse processo aqui para mim. Preciso protocolar esse pedido aqui, coisa para um parente. Não vai ser tão demorado quando pensa.
Jurandir voltou a primeira fila, mostrou o laudo, tirou o protocolo de desencarno. Depois foi para apelação, aquele não era o lugar que merecia, o juiz que presidiu a seção negou o apelo e condenou Jurandir a oitenta anos de trabalhos forçados por usar os recursos públicos num caso claramente sem pé nem cabeça. Só depois do cumprimento da sentença ele poderia voltar ao complexo, recolher as assinaturas necessárias e seguir viagem.
Passou oitenta anos trabalhando no cemitério desenterrando os recém-chegados. Aprendeu as manhas dos demônios e tentava ajudar quem chegava facilitando a vida deles.
O tempo passou lento, mas o serviço obrigatório havia acabado. Jurandir foi até o complexo e quando faltava uma única assinatura para enfim seguir viagem, falou para um dos atendentes.
– Meu caro, na vida eu fui funcionário de cartório. Se você não acha o meu cadastro, deixe que eu mesmo procuro. Entendo tudo disso e sei onde encontrar. Te falta boa vontade, seu demônio.
Jurandir ficou no depósito revirando fichas que não tinha nenhuma ordem. Quando finalmente encontrou o cadastro e saiu para buscar a última assinatura, viu o complexo vazio. Depois de muito procurar encontrou o diabo porteiro que riu na cara dele.
– Não ficou sabendo? Chegou o dia do juízo, o último apelo.
– Quer dizer que estou sozinho aqui e perdi a última chance de me livrar dessa?
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O legado Melnik
A mãe Melnik não via o filho desde o festival Ucraniano de Curitiba seis meses atrás, onde ele participou das danças; naquela mesma noite ouvira dele, que com alguns rapazes da comunidade lutariam pela terra que era sua por herança, recuperaremos nem que seja com sangue, mamãe, ela tentou engolir o choro que entalado virou tosse copiosa. Os dois choraram, ela pela partida do filho, ele pelo apego à mãe. Mas não se deixou mudar, não capitulou, não retrocedeu. Melnik neto da guerra, do avô que deixou o oeste da Ucrânia para salvar a família, retornaria com o pelotão dos descendentes. Antes de partirem receberam as bençãos do padre, as mãos dos homens e os beijos das mulheres. Pegaram o voo e embarcaram para a Polônia; depois foram de caminhão até a fronteira onde se alistaram. Alguns amigos se feriram no treinamento, Melnik ficou conhecido pela coragem e prosseguiu para o campo de resgate e batalha. Celulares desligados para não serem localizados pelos satélites russos. Melnik não reconheceu o país do avô, das histórias, das grandes lavouras. Não reconheceu os rios e lagos. Evacuou zonas de risco, tirou idosos de prédios bombardeados; velhos que não abandonaram a mãe Ucrânia e que morreriam aonde viveram. Melnik tirava-lhes à força, nos braços, nos ombros, nas camas dos inválidos. Em seis meses não conseguiu mandar notícias para casa, muito trabalho, muita guerra. Entre os resgates e deslocamentos, confrontos contra as forças russas, perdeu os amigos, e quis vingança. Aprendeu sabotagem, matou, vingou, torturou. Melnik cão doido, descontava nos soldados o que vira no seu povo. Cada mulher, criança, jovem e senhora, era sua irmã, cada homem, seu irmão, por eles não parou quando um fragmento de granada descepou o dedo mínimo direito; continuou atirando, protegendo o cinturão de evacuação, correndo para resgatar os ursinhos caídos das meninas, entrando na linha de fogo para carregar um irmão nos ombros. Melnik conseguiu ligar o celular e enviar uma mensagem para a mãe. Estava sentado numa trincheira de onde via o avanço do inimigo, uma bala na barriga outra no braço. Era hora. Mãe Melnik recebeu um vídeo no celular e viu o filho: o rosto lavado pela chuva, os olhos azuis bem claros no rosto pálido, ofegante “minha mãe, não quero que chore pelo filho, pelo guerreiro” ele levantou, olhou por cima da terra e voltou “eu estou feliz por ter dado a minha vida pelo povo. Não se preocupe, minha mãe, que teu filho já cumpriu a missão dele. Te amo”.
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O último dragão da independência
– Conte-me senhor, como foi aquele dia?
Fora recém-nomeado oficial e acompanhava o príncipe Dom Pedro no percurso até São Paulo. Lembrava muito bem das cores daqueles dias; guardava as luzes dos últimos sóis, depois que o acidente o cegou e mergulhara na escuridão. O príncipe visitava as vilas entre o Rio de Janeiro e São Paulo; e Ambrósio era parte da escolta, não que houvessem ameaças, mas vossa majestade precisava mostrar o poder da coroa, era bonito de ver; as pessoas recebiam a comitiva com carinho e admiração, se impressionavam com o príncipe, cediam as mesas e o que tivessem em casa. Dom Pedro não se importava muito com etiquetas, sabe? Comia com o povo, disputou alguns tiros de cavalo e não venceu por ser o príncipe, venceu por ser realmente bom naquilo. Um homem de fibra. Nós, os dragões, admirávamos aquela bravura.
Feito oficial, estive muito atento ao comandar os praças menos experientes, que no serviço, acabavam entrando nas brincadeiras do príncipe. Tive que mantê-los na linha.
Havia muita coisa no ar, sabe? Não era uma viagem comum, sentia-se nos fios do bigode. O padre Belchior costumava ser enérgico, digo por experiência própria; uma vez por semana estando aonde estivesse, o padre vestia a estola roxa, sentava-se à sombra de uma árvore, se tivesse, fazia-se confissão. Não era raro um praça ser absolvido aos gritos e tapas, eu te absolvo em nome do Pai, um tapa na testa, do Filho, no peito, e do Espírito Santo, dois soquinhos nos ombros, vá e não peque e terminava assim, se pecar venha, se arrependa e confesse novamente. Ele aproveitava para fazer o mesmo nas vilas. Bom homem, bom padre, aquele Belchior. O príncipe gostava muito dele, não dispensava os conselhos do padre estudado, diziam, era o que se via.
– Veja senhor, o príncipe tinha aquele jeito mas era homem fino, de tramar às escondidas e só mostrar o plano quando tudo já estivesse posto em ordem, feito fez naquele mesmo dia.
Numa das vilas encontramos um residente com um piano em casa, quase num impulso, Pedro tocou para que todos ouvissem. Fez-se baile. Tudo isso eu ouvia de fora. Serviço de dragão é isso, cuidar para que vossa majestade esteja sempre protegido. Vi gente do povo usando o que tinha de melhor, os homens foram ao barbeiro, as mulheres costuraram, as filhas queriam impressionar vossa alteza e as que não agradaram eram nossa companhia à noitinha. Mas não falemos disso, o padre Belchior não aprovaria de forma alguma. Ele veio aqui algumas vezes, homem bom o Belchior.
O príncipe gostava da nossa festa quando tudo se acalmava, ele saía do piano, deixava o salão improvisado e beijava a mão da última dama. Gostava de nos ver beber um pouco e lutar, como ele mesmo vira nas capoeiras. Não lutava é verdade, mas animava as batalhas. Digo nós, mas eu fui campeão e não lutava sempre, é claro, e oficial se deve o respeito; mas cuidei para que ninguém se ferisse sério. Tínhamos regras. O padre não aprovava.
– Foi ele, senhor, que deu o último empurrão em Dom Pedro, sabe?
Eu vi o cochicho nervoso. O padre com a carta estendida diante do príncipe, os olhos inchados, a tez muito vermelha de sol, de raiva, de alguma coisa; o príncipe passou a manhã e o início da tarde um pouco fraco, andando com cautela, mas não deixava de ter o charme cavaleiro de sempre. Em cavalo ou mula, fazia o animal seguir o seu raciocínio e vontade; não vou mentir para o senhor, ele tinha o mesmo efeito em todos nós. Talvez fosse isso que estivesse acontecendo; deixava a sua raiva passar para o padre e ele largava mão das estripulias até que o príncipe decidisse por fim, que caminho tomar.
Ficamos algum tempo às margens do rio, sentindo a brisa acalmar o dia quente, os arbustos se revolvendo, o sol queimando as pestanas. De longe víamos as mulheres indo até o rio, lavando e batendo roupa em pedra, repetiam como numa dança, mergulha, esfrega, bate, uma aqui, outra mais a frente, e outra e outra e mais outra. Quando se vê, são dezenas. Mães com filhos pequenos no colo, amarrados ao peito e mamando quando não sacoleja, quando sim, dormiam. Velhas, novas, todas elas terminavam e ardiam o sol nos panos brancos estirados nos varais. Uma cantoria subia o rio e lembro de pensar que no mundo tem de tudo e tudo que é vida convive bem entre si. Nós, homens de governo, armas e religião, lutando e sofrente, eles simples, gente da terra e do lar, vivendo o dia de hoje enquanto a corte vive cinquenta, cem anos para frente e para trás.
A última frase da melodia desceu, subiu o rio e se misturou com o som dos cascos do cavalo do príncipe. Vinha diferente, corado, impetuoso. O cavalo rebentando as correias, peito estufado, bafo vaporoso, mordia os nossos corcéis. Dom Pedro ordenou fila. Uma linha fizemos. Puxou o sabre com a ranhura de metal tilintando nos ouvidos, os cavalos agoniados com o som de cavalo quebrando seixos nos cascos; gritou à voz limpa e arrancou de nós trezentos anos de sonho.
– Independência ou morte!
Eu sabia que era um lema de uma casa, mas aquilo foi diferente. O senhor imagine o tanto que aguardávamos por aquilo. Naquele tempo se falava muito dessas coisas. Sussurravam nos corredores, e todos sabiam o príncipe que tínhamos, não era uma questão de “se” mas de “quando”.
– E depois? Lembra do que aconteceu?
Depois foi como se, não os cavalos, mas a terra se movesse debaixo de nós. A notícia corria em São Paulo e nas províncias vizinhas. Nós, dragões, vimos que de uma margem à outra do Ipiranga o príncipe se fez imperador, e repetiram isso, quase como se tivessem nos ouvido.
– Você contou?
– Uma indiscrição não tão grande não acha? O senhor me perdoa?
– Do que poderia se envergonhar?
– De não ter seguido com ele para Portugal.
Não fui por que estive muito perto de uma explosão de canhão que me feriu os olhos, por sorte só os olhos. Mas não reclamo. Vi muito. Na guerra se vê mais do que um homem deveria. Depois da Independência andamos muito Brasil, apaziguando o povo revoltado. O senhor seu pai, o Imperador, era homem que mudava os corações, tinha que vê. Pena ter morrido tão moço, vossa alteza.
– Papai era valente, acima de tudo, um guerreiro.
Dom Pedro II agradeceu Ambrósio, o último dragão da independência, que morreria dali a pouco, tempo suficiente para que o Imperador deixasse o Brasil às escondidas no raiar da República.
O último Imperador do Brasil deixou essa história em carta que chegou até mim num lote que vovô comprou num leilão de manuscritos científicos e esotéricos. Principalmente cartas que contavam as revoltas brasileiras. Hoje a publico para conhecimento de todos.
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Alarine Alariele
– Eu já trepei em pé na cadeira e sentado numa árvore.
– Como assim? Não é o contrário? Sentado na cadeira e em pé numa árvore?
– Devia ser, mas é que você não conhece Alarine Alariele. Se o nome dá um nó na língua imagina na cabeça.
Alarine Alariele era bicho solto. Menina criada descalça no sítio, comendo frutos silvestres e se banhando nos rios. Eu a conheci quando arrendei um pedaço da terra dos pais dela e vou te falar, um homem bom de negócio o seu Firmino, mas uma família doida. Acredita que uma vez cheguei de surpresa na casa para um agradecimento e encontrei os três pelados e sentados à mesa? Minha sorte foi que a senhora Alariele era baixinha e a mesa cobria os bicos do peito e a toalha cobriu as partes do velho; mas Alarine era outra coisa, estava de costas e eu nunca mais consegui tirar aquela imagem da cabeça.
Alarine Alariele se divertia vendo os bichos trepando, me disse depois, e queria trepar feito os cães, no meio do mato e depois rolar pela grama. Aconteceu mesmo. Antes de tudo, eu queria vê-la mais uma vez e fui na casa da família levar um doce de figo que minha irmã fazia. Fiquei de tocaia vendo se os pais saíam, queria encontrá-la sozinha, para minha sorte eles foram embora e eu não esperei, bati na porta e chamei por ela.
– Nossa, essa voz de macho me arrepia toda. – tentou falar baixo mas ele ouviu – Quem é?
– É João que arrendou umas terras do seu pai – ela abriu a porta subindo a alça do vestido – eu trouxe esse doce para você.
– Para mim? Entre. Ponha um pouquinho no dedo e me dê.
Assim do nada ela chupou o doce do meu dedo. Aquela mulher era doida, Vicente, ela arrancou as minhas calças assim, do nada, e disse, você já viu que dentro dessa casa ninguém usa roupas. Foi ali onde tudo começou.
Depois a gente não podia mais se ver. Nunca conversávamos, exceto por uma confissão ou outra que ela fazia de desejos. Trepar, ela só usava essa palavra, era a razão da existência, dizia. No mato, no rio, nas árvores, nas pedras, nos ninhos, nos grãos. Ela parecia ter uma lista na cabeça e medo de morrer antes de findá-la.
Meu amigo, eu não conseguia trabalhar de fraqueza. Fui ao médico comprar vitaminas, mas ela tinha se adiantado, comprou umas magias duma mãe-de-santo e encomendou uma simpatia para o bicho ter sempre vigor. Um dia cismou que queria se lambuzar de manteiga e mel, depois de tudo ficamos secando ao sol e dormimos. Acordamos com as formigas nos mordendo e foi um alívio, acredita? Ela me deu descanso de alguns dias porque as pretinhas tinham mordiscado tudo lá embaixo dela. Não em mim, a simpatia afastou os bichos de lá.
Consegui trabalhar um pouco, mas em pouco tempo já sentia falta de Alarine Alariele. Quando apareci na casa dela às escondidas descobri que ela também era doida de ciúmes. Disse que por que tinha ficado doente eu tinha trocado ela por outra, que ia arrancar o meu bicho se isso acontecesse.
– Mas João, como que você aguentou uma coisa dessas?
– Vicente, é que tu não conheceu Alarine Alariele.
Era tão apaixonada que fazia de tudo por mim. Conseguiu renegociar as terras do pai a um preço melhor, fazia comida, lavava minhas roupas, cuidava das minhas contas e não me roubava um tostão, eu penso até que roubava do pai para me dar. Na época eu criava uns bichos só para mim mesmo. Umas galinhas para ter ovo e uma galinhada vez ou outra; cabra, bode, uma vaquinha e o boi velho que não fazia mais nada. Quando ela veio morar comigo parece que os bichos ouviram o chamado divino da procriação e começaram a parir sem descanso. Daí começamos a vender ovos, leite, bicho vivo e morto e com dinheiro Alarine Alariele foi ficando cada vez mais fogosa. Comprava umas roupas e me fazia rasgar tudo nos dentes.
Mas comecei a me preocupar quando numa noite de lua cheia a encontrei toda nua no alto duma colina uivando para lua. Eu fiquei assustado mas você não conheceu Alarine Alariele, vestida de lua dormimos ali mesmo. Mas a noite ao relento me adoeceu e eu quase morri, também já estava meio fraco e ela disse que era do trabalho. Com o dinheiro que tínhamos poderia voltar para a casa da fazenda, onde morei quando nos conhecemos, e viver a vida. Ainda doente ela me mandou para a fazenda acompanhado de um médico e chegou pouco depois. Só aí me contou que tocou fogo em tudo e matou os bichos, só trouxe os que já tinha antes de nos juntarmos.
Vicente ficou olhando com os olhos esbranquiçados e os cabelos de pé. Depois concordou – Acho que é por que eu não conheci Alarine Alariele – fiz que sim. – Mas porque ela não está aqui com você?
– Eu te falei que ela era meio doida? Então, era mais que isso.
Um dia, e isso eu conto com vergonha mas é para você entender, ela estava possuída, aquela mulher, estava possuída pelo demônio da luxúria, Vicente; ela acabou entortando o meu bicho que ficou como morto. Aquela mulher enlouqueceu e quebrou tudo em casa, depois ainda me deu uma surra, jogou cadeira, prato, cinto, me unhou inteiro e a única coisa que pude fazer foi fugir. Fugi sim, admito, mas fugi por amor, sabia que se ficasse íamos acabar nos matando.
– E nunca mais se viram?
– Nem quero, Vicente.
– Você sabe onde ela está?
– Você sabe? Por favor não me diga. Se eu souber largo tudo para voltar com ela.
– Mas João, você tem esposa e quatro filhos.
– É que você não conheceu Alarine Alariele.