Dois poemas de Débora Calmon
Débora Calmon é uma carioca lésbica, tentando descobrir que existe amor em SP. Autora do livro Gozantes (ed. Philos), vive uma dupla personalidade trabalhando como economista em horário comercial, mas na essência é autora e cria do carnaval do rio.
@calmon
@obloconce
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Gente Goza
Uma luz fria. Um ambiente frio. Um murmurinho abraça a sala. Uma sala cheia. Cheia de “cidadãos de bem”, fazendo a economia girar. Responsáveis por milhões, milhares. Do que? sempre me pergunto. As telas piscam, dedos inquietos nos teclados. Todos ansiosos por notícias, resultados, perspectivas, mas não as de suas vidas. Uma ansiedade que já matou vários. Falas complicadas e siglas, gostam de mostrar suas habilidades, seu raciocínio lógico.
Precisam ser os primeiros. Primeiros de qualquer coisa, torturam os números e as falas para que de alguma forma eles sangrem o primeiro lugar. De onde ou de que? Tanto faz, desde que seja primeiro. O importante é ser melhor, ou talvez se mostrar o melhor. Talvez isso os transforme em cidadãos melhores? Não para a sociedade, cagam para a sociedade. Não conseguem perceber isto, afinal são os “cidadãos de bem”. Mas tratam outros como seres inferiores, claro eles foram os primeiros.
O que importa é o resultado. Uma busca exaustiva pela melhor performance. Sexual? Seria melhor…deixariam mais pessoas felizes. A sala cheia, está cheia de pessoas frias. Ou seriam elas frígidas? Falam de sexo, mas não sei se fazem. Ou se fazem direito… o certo na transa não existe, diferente dos modelos certos que estão acostumados a trabalhar. Mas existe o fazer direito… nisso o que importa não é o resultado final, os calafrios do caminho é que são. Mas o importante pra eles, é sempre o resultado. Talvez por isso tantos filhos. Tomara que os filhos sejam cidadãos melhores.
Saber mexer com dinheiro traz essa confiança, como se mexer com gente fosse fácil. Pelo menos gente sente. Gente goza.
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Gozos
O sistema foi feito assim, alguns gozam e outros não. Não sei dizer quando que começou, parece que desde sempre.
Sendo mais honesta, poucos gozam de muito e muitos gozam de pouco. Gozam de poder e de escolhas que afetam o gozo do povo. Gozam de liberdades e oportunidades diferentes e falam que é direito de todos.
Os grandiosos gozos são consequências puramente meritocráticas, desigualdade nunca! O gozo dos poderosos, porque eles o mereceram. De onde veio o mérito, não o sabem direito. Mas gozam do mérito é claro.
Gozam da confiança. Confiança de que nada faltará e que o justo não os atinge. Afinal a justiça é sua serva. Uma serva que só serve para limitar o gozo da massa.
Gozam de bens. Se autodenominam ‘cidadão de bem’. Cidadãos de bem com bens. Tem os que não tem bens, mas tem uma miopia aguda causada pela ânsia do gozo. Se vislumbram pelo gozo dos poucos e acreditam que merecem esse gozo. Também não sabem de onde vem, mas já gozam do mérito e da confiança de que gozarão como os poucos.
Os cidadãos de bem sem bens defendem com garras e dentes o gozo concentrado, alimentam a confiança e segurança dos cidadãos de bem com bens, criando uma roda infinita canibal. Não conseguem pensar além do gozo dos poucos e o sistema roda.
Cidadãos de bem se esquecem também que existe o gozo do povo. Ou têm medo, não sei. Só querem rodar uma máquina antiga, que não goza, para manter ou atingir seus mil gozos. Pena, porque o gozo de poucos é um gozo sem sentido. Afinal, nada melhor do que um gozo distribuído.
Cidadãos de bem fecham os olhos (do cu?) para o gozo real. O gozo da massa pode parecer pouco, mas é um gozo de gozo. O povo sabe gozar. Com o pouco que vive goza da vida, reconhece o que é um gozo. Gozo com movimento, sentimento, criado dentro do próprio ser e não dado por algo(uem).
Um gozo gostoso.
Um gozo prazeroso.
Um gozo humano.
Esse gozo carnavalesco que não se aprende, só se sente. Começa na mente, sai de dentro pra ser dividido com mais gente.
Mas também, a vida foi feita assim, alguns gozam e outros não.