Dois poemas de Flávio Viegas Amoreira
Flávio Viegas Amoreira é escritor, crítico literário e professor em oficinas literárias em São Paulo; já lançou 17 livros entre poesia, contos e romance; e é colaborador de várias revistas e jornais. Nasceu em Santos em 1965, destacando-se na literatura de invenção transmoderna. Foi incluído na prestigiada Geração Zero Zero de autores inventivos no conto na primeira década do século XXI.
***
Poema Nise
I.
Porque de fato outra viagem nem digo
rumo que seja amor
miragem amante do delírio
não há quem perpetue habitar o sonho
depois proclamando nada além de ser mais dito
bendigo mesmo a lucidez luminada
sem gemidos ou rufar de tambores
então relembra o delicado bispo até o almirante negro
as cores do Nêgo Dito nem eterno nem olvido
que olhava os pássaros
garatujando bóias âncoras ondas e caramujos
com todo saber do Benedito
o mundo dado num raio de luz benfazejo
na manhã do pátio
e seu desmentido das sombras do real
lá fora o seu murmúrio
vendo as cores fortes de tanto brilho
o fulgor não nego
não sei se rasgo
rengo
vibro
de Anteu ou Tritão vencidos
mas de louco nunca além de havido
muito habitado de tanto navegando
aquela barca nuvem de céu estrelado
ainda que despido da lua atracado
solto de discurso algum descanso nexo
da arte ruminando
por que não me venham dizer :
´alguma felicidade é coisa de doido ´
II.
´´ de tantas moradas
só permanecer num só quadrado
vaso partido que ainda floresce
mergulhado de olhar destoa até o vento
algum outro vezo da percepção
caule
rizomas
fontes
sair do labirinto
reinventar sua prisão
insuportáveis verdades
de dervixe
não ter razão alguma
que não derive
obsessão
traço
risco
senso pelo esforço
certo troço
escorço
contorno benevolente
duma samambaia milenar
em teu encalço
de lago denso
que não um bicho
que não nem grito
da mão
da planta um viço
dizer que seja e não desdigo
luz muita luz
não foi apelo derradeiro daquele sábio ?
de todo santo em êxtase
demente algum tão inundado de tanta luz
que não se torne apesar do tirano sofrimento
menos mágico
enquanto cria
não tome nenhum vulgo
apodo
codinome
que não o de demiurgo
no seu canto
mistagogo
e quando em círculo silente
Beatriz
Nise
campeando
ao paraíso de algum significado
redentor .´´
*
Des Casulo
I.
vi a aurora
enluecer
engolindo seu verso dourado
II.
foi detalhe
e nele o Éden do corpo
III.
abrasador
o verão toma me pelos raios solares
dos teus lábios intocados
IV.
vento libertador
oceano alado
V.
doma o sonho
galgo
cavalga a noite liberta
VI.
vibra teu silêncio
o pássaro brisa
VII.
demoraria em teu corpo
com a espera
sem sombra
VIII.
ah! que a maresia vibra
tenra no ar
enquanto rente
a lua míngua
IX.
poema
o que se escreve
poesia
o que se sente
X.
no tempo
o dia
vírgula de esquecimento
XI.
vê se a dobra
das ondas te enternece
ao horizonte
XII.
não é teu sexo
são os arredores
XIII.
no que esboça
cria poesia
teu caminho
XIV.
os pés cansados
mas os moinhos
movem
XV.
tanta querência
nesse silêncio de fonte
XVI.
sem timidez
a chuva
XVII.
acaso ali
já me habitavas
em pressentimento
XVIII.
bem diz a paisagem
verão
febrilmente
XIX.
define e contêm
compõem tua sintaxe
na substância da tua vida prenhe, arte
XX.
não tenho palavras santas
nem tristeza maior que o tempo
tenho minha circunstância
e as canções do vento
XXI.
divago
o que pensa
voa criando nas nuvens
o céu da boca
XXII.
desperta silente
não atordoar o pássaro
alvorescente:
alba
XXIII.
que espreitais
olhos insedentos?
se tudo variação
descomeço….
XXIV.
há uma forma
de poesia não pretérita
esboçada no imprevisível
horizonte
XXV.
nada de repente
alegrias cotidianas
toda rotina exuberante
gerânio
um fechar janelas
enquanto chove
XVI.
até onde a vista alcança
sonha
XXVII.
tinha poesia
por fazer incessante
e o amante
para descobrir sem fim
XVIII.
ainda não fizeram
pontes para onde
nos escondíamos
XXIX.
o que de melhor
o homem acrescenta
ao mundo são as coisas inúteis
XXX.
a lua crescente
para uma alma
faminta
31.
viver para conhecer as delicadezas
todas possíveis
32.
talvez mesmo só
o silêncio seja sincero
o orgasmo
a dor seja ela franca
o homem em sonho
33.
mas teu poema
não brota
ouro de aluvião
garimpa no improvável
34.
essa sensação
sideral
de estarmos nus
num aquário etéreo
35.
que milagres operados
onde estivemos no dia das saliências
36.
os membros lassos
ao luzir dos seios túmidos
satirizados
reencontrantes
37.
entre irrestrições
tentaculares
os gomos
mais rijos
38.
mergulhão
o vento nas ondas
tordo
insone
39.
não proveito
intento
sobre a matéria
informe
40.
da impossibilidade
esses cantos
do prazer
a fonte
41.
escrever o que vivo
no ritmo que penso
bloco a verso
templo
42.
ainda
colho os frutos
que não feneceram
no inverno
43.
consome o olhar
horizonte não cansa
44.
memórias incertas
para acontecimentos desejados
45.
o prazer do poema
é teu entendimento único
46.
quando nasce uma rosa
surge a fé
da seiva
nasce com ela
sua confiança
47.
para uma vida ampla?
vede a bula
vide verso
48.
não há rubra rosa
que não detenha
com poesia
o ardil dum punhal
49.
atmosfera :
um vento difuso
com sentido de eterno
50.
entre o arado
o cajado
cálamo
a rima
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(Fotografia: Ciro Hamen e Bruna Indalécio)