Dois poemas de Jess Pereira
Jess Pereira pesquisa o corpo em suas sangrias. Desenraízada, é Psicóloga e Mestra em Psicologia Social Crítica acidentada pela poesia, sapatão e vegana. Realiza uma busca poética, materializada em alguns espaços como Circuito Cultural Online UNIFAL-MG (2020), “Coletânea Eu, Mulher, existo e resisto” (2019) pelo editorial A Estranhamente, na “Coletânea Poesia e Prosa” (em processo) pela Editora Luas chamada 2020; e na coletânea “Erótica: versos lésbicos” (em processo) pelo Selo Cassias Imperiais da Editora Tucum, chamada (2021). Publica em @_lama_de_carne_
***
Antropofagia
Carnificina diária
No prato, na terra, na prata
A carne que escorre entre nossos dentes
o sangue no ponto
Selvageria tirânica
O sangue que escorre nos dentes, entres as pernas, na terra que abre veios sobre a mão dos mesmos
Que sangra iguais pela prata, pelo ouro, pela migalha que tira da boca com fome
Criatura criadora da morte, criadouros de bife, de coisa, de leite, materno que escorre pus na vaca que mata bezerro e alimenta os beberrões da carnificina de animal e gente
Leite que seca no peito da mãe seca de fome morta de trabalho, criadouros, matadouros, de gente, de animal, canibais da historia
Rasgam a carne com mão, com faca, revolve entranhas, arrancam pedaço, enchem as bocas de morte, de carne e da falta de sorte das vidas menores,
transformam o sangue em chouriço grosso e escuro que comem, engolem, o sangue puro do animal, da presa da perca da menina caída no chão, na terra, que sangra e mina, na terra, sangue de quem era ela
Os chouriços grossos, animais alimentados, talham o sangue pra se alimentarem melhor, sangue vivo pra melhor matar, fazer escurecer o vermelho e tirar da terra
Abrir os veios latinos da américa que muito úmida hoje já seca ou melhor queima nas mãos dos mesmos
O sangue escorrer na terra que queima e queima pra estuprar, extirpar, extrair, matar, matar, matar e alimentar com carne e sangue, suculenta carne de animal, de gente, de vida morta, de sobreviva resistente que tenta mas ainda serve na mesa de toda gente a morte própria e mastiga ao ponto todas as carnes dessa morada e de novidade nessa terra abrimos uma churrascaria
Assamos queimamos a vida ainda viva pra servir suculenta e sangrando a cada prato nosso do dia
Meu peito floresta viva queima e junto a ele o mundo por inteiro vira churrasco de sexta feira pra animal e gente se degustar.
E as barrigas ainda morrem vazias,
*
o corpo que transforma
era isso que reluzia sombras
era isso que fazia de meu dia noite
como pura animal noturna histórica
me achei engatilhando sobre a terra
me sujando com o sangue, meu e dos outros
me lambuzando dos gostos da carne, dos dedos e da luxuria
como uma espécie noturna me arrasto junto ao chão, me colam, obrigam a ele
serpente alada
foram tirada as pernas, para que o esforço seja maior
os braços pra que nada faça sem ser rastejar
a causa
não! a causa não!
serpente é substantivo feminino
como víbora, aquela que trouxe ao mundo, junto a mulher, o pecado
a queda do paraíso dos homens
aqui, no mundo da queda, ainda tentam retornar aos paraísos perdidos
ainda impõe sobre o substantivo o feminino
impuro, sujo, este que nada tem de mulher
a lascividade é o sangue, a virtude é transmutada em força e a fragilidade em poder
ainda assim: eva, cobra, serpente, puta, prostituta, fancha, sodomita sapatona
somos animas noturnos, pois, fizeram de nós assim
mulheres, animais, mulheres, animais carnais, animais corporais, mulheres
a sombra abriga nossos sussurros que nenhuma luz é capaz de queimar
eles temem, temem que Circe transforme Ulisses em animal
que as Serias mostrem ao mundo teu silêncio
e nele, só nele
no silêncio que habita cada mulher, cumpra-se o destino cruel da carne
o poder alquímico dos corpos, os ciclos fundidos em ritos, mitos, já esquecidos de nós bruxas, nós, evas, nós
desço a mão devagar sobre tuas coxas, lemos tudo juntas
tuas mãos, que veem frequentemente ao quente de minha casa, também frequentam os mesmos livros que eu
da queda do paraíso ao feitiço silencioso
todo dia rezamos
juntamos nossas mãos nuas e juntas gozamos
e juntas oramos que afaste de nós os nós que nos forçam a cada dia
rastejamos pelo lençol
podem nos atar, arrancar de nossos corpos, dilacerar nossas carnes, fazer o sangue brotar a cada vestígio de pelo suja que rasteja nessa lama decaída
nossa condenação nos liberta
uma vez noturnas, nós, mulheres, no silêncio, criamos nossa alquimia, aprendemos a amar.