Dois poemas de Kaio Phelipe
Kaio Phelipe nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1997. É autor dos livros Não existe pecado no lugar de onde eu vim (Ed. O Sexo da Palavra, 2022), Para o homem descansando ao meu lado (Ed. Nua, 2020) e Como cuidar de um girassol (Ed. Patuá, 2019).
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Novo terreno para a justiça
Onde o buraco é mais embaixo
não há do que se comover
a arte não imita a vida
não há paleta de cores em concordância
fotografias
nem aroma de incenso de sândalo na sala de estar
aqui embaixo
a história é inventada
por uns maus sujeitos ricos
que se reconhecem pela bíblia
e calibre que sustentam embaixo do braço
criam leis para proteger seus sobrenomes
sujos
e seus ires e vires de condomínios na orla da praia
a manchete do jornal diz
ladrão de carros é preso em flagrante na Baixada Fluminense
a alcunha do ladrão
Gabriel
na foto
o amigo que dividiu a juventude comigo
no país feito pelos desvalidos
e tomado por ricos
pobre conta sua versão da história
de mãos algemadas diante de um juiz
o pai do ladrão de carros
anos de ódios antes
assassinado a tiros
a história da família marcada pela violência
caso dado como encerrado quando descoberto que
a bala saiu de uma carabina .40
a arma mais utilizada dentro da Polícia Militar do Rio de Janeiro
quem é o erro para os que inventam leis
quem se julga maior que Deus diante de um perdão
quais são as maneiras corretas de ficar rico
e a quem pertence o sangue derramado em seguida
como se constrói uma justiça
ou quanto vale um morador do Morro do Carrapato
em um tribunal
em qual lado da mesa ele está
embaixo do buraco
perdemos os medos aos poucos
conforme crescemos
os embates garantem a sobrevivência
a única injúria
é roubar de quem é mais pobre
sistema carcerário nunca conteve violência
embaixo do buraco
todo preso é político
vai ver o ladrão de carros ainda é um menino
e as prisões são os últimos lugares do planeta.
*
Os limites no sudeste do país
Agora iremos para o segundo ano
dessa história atravessada
pela promessa de futuro
ao invés de ser artifício para erradicar a saudade
a tecnologia prolonga o pesar
é chato amar sempre digitando as palavras
com a interferência das indústrias em nossas definições
já te preparei as boas vindas mil vezes
tantas vezes desfeitas que perdi o gosto por contar
para que serve o amontoado de conhecimento
se não for para defraudar fronteiras e erros telúricos
e o que custa por dias
deixar de lado os atos heroicos
pelo cuidado de alguém que te sonha
mesmo no desassossego
é verdade que seu sorriso me alegra
através da parafernalha das telas dos celulares
e são dessas palavras molhadas que preciso
mas além do desassossego
te quero aos amanheceres dos dias
nas paisagens dos céus que trocamos fielmente às oitos horas
e depois como sei dos seus gostos e gestos
aqui poderemos conversar sobre Clarice
se depois deixarmos Clarice de lado
e escutar Luiz Melodia
se depois deixarmos Luiz Melodia de lado
para se atentar aos beijos e às vistas costumeiras
mas nesse dia com a graça de ver de perto o esmalte de seus dentes
o café terá outro gosto
o cigarro não irá matar ninguém por 24 horas
o sexo depois de questionado será atendido
porque ambas medidas são extremamente importantes
os amores se concretizarão no gosto do suor do outro
o homem mais bonito de toda São Paulo
não será mais o homem que por vezes me esquece e me abandona.