Dois poemas e dois contos de Jaciene de Andrade Santos
Jaciene de Andrade Santos, natural de Feira de Santana (BA), escreve a partir da contemplação do mundo das palavras, das coisas e de si mesma. Professora da Rede Estadual de Ensino da Bahia, é graduada em Letras Vernáculas e mestre em Estudos Literários pela UEFS. Publicou o livro de crítica literária “Textos em trânsito: Machado de Assis e o projeto literário nacional” (2019), e tem participação em duas publicações, com poema e conto.
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RESPIRAÇÃO
Suspirar, desde os pés,
na terra que não é minha,
a terra que eu sou.
Suspirar o engasgo
entalhado na garganta
e o miolo úmido
na casca seca da esperança.
Suspirar o corpo fincado
sobre raiz de pássaro
que canta
cor de forte.
*
O ENQUANTO
Eu, criança, observava mainha colocar o bolo no forno, e ficava querendo tanto ver o bolo crescer! Esticava as vistas e o pescoço dando voltas no fogão, enquanto tentava, ao mesmo tempo, obedecer a ordem de não chegar perto demais para não me queimar.
Não é que eu quisesse ver o bolo pronto logo. Não. Eu queria era vê-lo crescendo. Queria o movimento, a dança. Assim como queria ver no céu a nuvem-cachorro se transformando em nuvem-coração.
No nome das coisas só cabe um pedacinho de tempo até que elas se tornem outra coisa. E essa outra coisa vai receber outro nome só por mais outro pedacinho de tempo… E assim, mal eu me distraio, e a nuvem-coração já é nuvem-pássaro, e o bolo já saiu dourado do forno. Volto a mim, e a apreciar os processos. O encanto das coisas é o enquanto das coisas.
*
CISTERNA
Para escapar do amor é que eu o distribuía. E quando o abracei, era como descobrir o que me habita antes das minhas memórias. O fundo do meu coração. E, por ouvi-lo, eu vi. Meu coração é como a cisterna da casa da minha avó, com um fundo misterioso e potente, recriando em eco todos os gritos que eu lhe lançava do lado de fora.
Do fundo dele vem essa outra luz que só se entrega à medida que meus olhos, ainda turvos por claridades artificiais, aprendem a enxergá-lo como é: amor dissociado de serventias, vivo e feliz em si mesmo. Na cisterna, não sou o grito que espera respostas. Não sou o medo de encarar a água que existe em toda escuridão. Eu sou onde se perde o espaço. Eu sou o fundo.
*
CICLO
Escorado em seus ossos,
o mundo seca.
O mundo seca,
sem que eu veja o sol.
Tenho olhos vazando
pra dentro
da minha quentura
e desse mormaço
é que arranco água.
Porque me armo
como o céu exige chuva
e descanso
como a nuvem despedaça.