Dois poemas e uma cosmogonia de Guilherme Aniceto
Guilherme Aniceto é natural de Itajubá/MG, poeta publicado pelas Editoras LiteraCidade (“Nós Líricos”, 2015), Penalux (“Guerra”, 2017, e “Haiqueer”, 2022) e Qualis (“Aglomerados”, 2020). Também publicou, em 2021, um livro independente, na plataforma Amazon, chamado “30 poemas para o orgulho (e um para depois)”. Faz parte da equipe de poetas do “Fazia Poesia”, portal de poesia contemporânea na plataforma Medium. Também é técnico-administrativo em educação em uma universidade federal e estudante de Letras.
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Origem
cabral descobriu uma roda de colonização
dos homens indígenas do brasil
das mulheres indígenas do brasil
das aldeias indígenas do brasil
os povos originários desta terra
que não se chamava brasil
não faziam ideia de que existia um país
com gana de engolir o planeta pelo mar
eles sabiam que o mico-leão-dourado
macaqueava como o sol do meio-dia
e que o tamanduá-bandeira deglutia
formigas com apetite de fogo
que ainda voavam as araras-azuis
e se confundiam com a tranquilidade
dos reflexos no rio, que o rio corria
limpo, incólume, inocente e nu
e que os bichos tinham nomes
mas não eram nomes violados por caravelas
ou por pedaços de pano, a imprimir decência
onde só existia a honestidade
de todos os deuses que coabitavam
não no céu, mas na própria floresta
no raiar do mico, no lamber do tamanduá
no voo da arara e no nome das coisas
todos eles [os deuses] se transfiguraram
em torno de um chumaço de algodão
branco como o nervosismo da névoa
e assim a primeira missa marcou território
de lá para cá, cabrais que não se chamavam cabral
assim como o primeiro pedro álvares
dizimaram periodicamente a cor vermelha
do sangue e da pele indígena — e fim.
*
Vitória
Deitada sobre a superfície da água,
Vitória resiste e espera.
Submersa, a sua fortaleza intocada:
alguma derrota em equilíbrio
talvez exista
sob as suas nuances e curvas verdes.
Onde a flor se esconde,
que não circunda, nem preenche
este círculo que verdeja persistente
sobre o verniz espelhado do rio?
Deitada sobre a superfície da água,
Vitória oculta a maior flor da América:
Naiá, flor que só se abre à noite
para namorar a Lua,
aliciar e prender besouros.
*
Cosmogonia da criança-viada-homem
Uma ave com garras enormes pousou sobre a cerca que ficava rente ao canteiro de margaridas. Atrás da cerca, um rio cortava a fazenda. A mocinha esfregava as roupas do pai, absorta e à margem. Quando ela acordou, só viu um vulto sumindo nas águas. Nove meses depois, nascia o seu menino. Filho de virgem é Cristo reencarnado!, o pai da menina estava orgulhoso.
A ave com garras enormes pousou sobre o peitoril da janela e soltou um urro: É filho de boto! E todos ficaram maravilhados porque uma coruja sabia falar e se esqueceram de que havia nascido uma criança. A criança cresceu e era uma criança viada, descobrindo sozinha que não tinha pai. Aos 18 anos, a criança brincava às margens do rio e ali foi iniciada pelo boto com um beijo quente. A criança-homem era filha do próprio amante, amante da própria origem.
A ave com garras enormes arrancou os olhos da criança-homem, comeu seu corpo e depois devolveu-lhe a vida, ensinando-lhe que existe alma. Assim nasceu a poesia, assim nasceram flores-margarida em outro canteiro, onde elas não existiam antes. A criança-viada-homem era um corpo-vazio que teve de morrer para depois nascer de novo, agora com alma.