Dossier Guilherme de Faria (Portugal) – Por Pedro Lopes Adão
(O presente Dossier de Poesia consiste numa colaboração entre a Ruído Manifesto e o poeta Pedro Lopes Adão. O excerto que aqui colocamos à disposição dos nossos leitores da obra pode ser adquirida através do seguinte link: https://officiumlectionis.pt/produto/guilherme-de-faria-saudade-minha-poesias-escolhidas/)
“O livro definitivo de Guilherme de Faria”, por José Rui Teixeira
«O jovem poeta passava muito do seu tempo n’A Brasileira do Chiado, de onde praticamente se vê a porta da casa onde vivia. No histórico café, Guilherme de Faria frequentou durante algum tempo o séquito de Teixeira Pascoaes, de quem seria editor, em 1924 e 1925.
Companheiros de Guilherme de Faria, frequentavam a casa da Rua da Horta Seca, entre outros, Manuel de Castro, Anrique Paço d’Arcos, João da Câmara, Eduardo Brazão, António Hartwich Nunes e António Pedro. Entre eles, Manuel de Castro foi o mais próximo. As cartas que Guilherme de Faria lhe escreveu, revelam-nos uma «personagem dramática, cheia de sonho e de ambição, mas impotente perante a vida que não pôde ou não soube construir em moldes práticos». Com efeito, Guilherme e Manuel foram companheiros no liceu, nos cafés, na infindável deambulação noturna por Lisboa, na incipiente e depois falhada aventura editorial; uniu- -os uma estreita amizade que se tornaria para Guilherme de Faria lugar central das suas confidências.
Porém, por detrás da figura do amigo, permanecia intocável, distante, quase em sonho, a figura formosa de Emília, irmã de Manuel de Castro. Guilherme de Faria amou-a em silêncio, na medida em que é quase certo que nunca chegou a declarar-se-lhe. Emília Castro ocupa, na efémera e intensa existência do poeta, um lugar central que se intensifica dramaticamente até aos primeiros dias de 1929.
Guilherme de Faria inicia o seu interessante itinerário poético em abril de 1922, com a publicação de Poemas, oito poesias que traziam já a marca de um pessimismo muito característico, que não passou desapercebido à crítica que, ainda assim, acolhe-o com benevolência. Não podiam imaginar os críticos que acolheram na imprensa este primeiro livro de Guilherme de Faria, que as suas palavras aceitavam inconscientemente a fatalidade que marcaria o futuro do poeta. Joaquim Manso escreveria no Diário de Lisboa: «É um poeta de 14 anos que já interroga a vida. Não se compraz na alegria porque a dor se lhe afigura companheira inseparável dos seus desejos e esperanças. Esperamos que se engane».
Em novembro de 1922, Guilherme apresenta Mais Poemas e, em 1923, experimenta de um modo iniludível o fracasso nos estudos.
Em 1924, juntamente com Manuel de Castro, aventura-se num empreendimento editorial. Sem qualquer interesse pelos estudos, Guilherme acredita que pode realizar-se como editor, mas cedo acusou a inexperiência e o desânimo que resultava de preocupações e contrariedades na gestão da editora.
Nesse mesmo ano apresenta Sombra. O tempo que separa este livro de Poemas e Mais Poemas serviu para que Guilherme de Faria fortalecesse, com intensa leitura, a sua cultura literária: Camões, Bernardim, Frei Agostinho da Cruz, Antero e João de Deus são companheiros de muitas horas de aparente ociosidade. «Ler, conversar, falar de poetas, era o gosto singelo da sua existência».»
CREPUSCULAR
Num grande mar de luz a tarde cai,
Morre, desfeita em sombras… E a tristeza
Da agonia do sol que, ao longe, vai
Expirando, anoitece a natureza.
Hora triste e magoada como um ai!
Hora saudosa, eterna e portuguesa!
– Ave Maria… Ave Maria… – E cai,
Mais profunda e nostálgica, a tristeza.
Pairam nuvens de sonho sobre os montes;
E, mudo, ouvindo a música das fontes,
Eu vou com ela, extático, a sonhar!
E, no mar, vai o sol a esmorecer…
– Quem me dera, meu Deus, também morrer
Para, amanhã, no azul – ressuscitar!
*
DE NOITE
Não sonhes mais de amor…
Deixa os astros, na sombra, a cintilar,
Que, para nós, é vão o seu fulgor,
E deixa de sonhar.
Adormece, não queiras mais sonhar;
Fecha os olhos, amor… A vida é assim…
Deixa as sombras e os astros divagar,
E esquece-te de mim.
A vida não é um sonho de ansiedade
Inútil de sofrer,
Que, para além da vida, há uma verdade
– E temos de morrer!
Assim, debaixo da verdade eterna,
Para quê desejar sonhos, ideais?
Sepultados no fundo da caverna,
Esperemos, somente, a luz eterna
Das horas imortais!
Não desejes o sol que reverbera:
Olha, no poente, a fulva luz da aurora…
E fiquemos, assim, meu pobre amor, à espera
Da morte redentora.
*
ORAÇÃO
Visão do eterno bem, sonho infinito
De eterna luz e extático fulgor,
Acende em mim a graça e resplendor
Do teu supremo ideal de amor bendito.
Se, na humana expiação, blasfemo e grito,
Perdoa e dá-me a fé no teu alvor,
Porque, só de sonhá-lo, neste horror,
Sinto ascender a Deus meu ser aflito.
E quando a vida escura e dolorosa
Passar, desfeita em névoas de ilusão,
Ante o frio da Morte misteriosa,
– Oh piedosa e sagrada Aparição! –
Doira a minha alma com a luz radiosa
Do teu olhar de bênção e perdão!
*
ETERNIDADE
Vejo, num sonho sem fim,
– Sonho de amor e saudade –
Já suspenso sobre mim
O esplendor da eternidade.
Vejo a luz radiosa, etérea,
A luz divina pairando
Por sobre um ser miserando
Que é toda a humana miséria.
E, no sonho que ora vivo,
Passam astros a brilhar;
E, num sorriso furtivo,
Vejo a luz do teu olhar.
Oh meu Amor!, oh Saudade!
Sou luz esparsa nos céus…
– E, sobre a tua humildade,
Descem as bênçãos de Deus… –
Aqui, nos altos espaços,
Não há lembranças, nem dores,
Nem deceções ou cansaços…
– Há só sorrisos e flores!
Mas, ai de mim, não te esqueço!
E, quando surge o luar,
Fecho os olhos, adormeço,
Para contigo sonhar…
*
CANTIGA DE SAUDADE
Há tanto já que a não vejo!
É morta em mim a luz pura
Da esperança, e meu desejo
Morre também, de amargura…
Assim eu cismo, noite alta;
E vagueio e sonho, ao luar…
E em sonhos se perde e exalta
Minha alma, só de a lembrar!
Voz das guitarras chorosas
Da Mouraria e de Alfama,
Dizei-me, vozes saudosas,
Se o meu Amor me não ama?
E, no silêncio profundo,
Sobem ao céu minhas trovas
E a tudo eu falo, na dor
Desta ausência, à noite, ao mundo,
Aos astros e seu esplendor:
– Dizei-me se sabeis novas,
Ai novas do meu Amor?
*
FIM
Alma, enfim descansa
Na desesperança.
Alma, esquece e passa:
Dorme, enfim segura
Dessa última graça
Que é toda a ventura.
E à Saudade em flor
Que o teu sonho lindo
Perfumou de amor,
Diz-lhe adeus, sorrindo…
Que Ela há de escutar-te,
Pálida, a entender-te!
E, no espanto enorme,
Sonhando envolver-te,
Triste, há de embalar-te
– «Dorme… dorme… dorme…» –
Como a adormecer-te.
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Nesta coluna da Ruído Manifesto, o poeta Pedro Lopes Adão trará poetas portugueses de todas as escolas, épocas, canónicos ou marginais, premiados ou não, sendo o único critério a riqueza que as suas obras trouxeram ao panorama da literatura portuguesa. Cada dossier pautar-se-á sempre por um conjunto de poemas e um olhar crítico de um estudioso sobre ela.