Duas crônicas de Sandra Caselato
Sandra Caselato é Psicóloga, Bacharel em Artes Plásticas, Especialista em Didática do Ensino Superior, membro da Associação Paulista da Abordagem Centrada na Pessoa (APACP). Escreve mensalmente para a revista Bons Fluidos e é colunista da UOL: http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br
***
O rio e a pedra no fundo do rio
Nesses dias de coronavírus, pandemia, quarentena, tem me acompanhado uma pequena tensão do lado esquerdo, uma dorzinha que fica lá incomodando, entre o ombro e o pescoço. Não chega a ser um torcicolo, não impede meus movimentos, mas me atrapalha. Se presto mais atenção, percebo que a tensão irradia levemente para minha mão e para a cabeça, para a têmpora esquerda e atrás do olho. Quero que ela desapareça, não quero esse estorvo. Porém, quanto mais eu tento me livrar, mais a contração cresce. Giro o pescoço, faço massagem, movimento meu corpo, procuro relaxar. Quanto mais eu me esforço, mais a dor aumenta. O lugarzinho continua tenso, duro, imóvel, petrificado. Parece uma pedra, dura e fria.
Decido, então, mergulhar nesta imagem empedrada: me torno essa pedra… Sinto meu corpo todo tenso, preso, rígido, como se quisesse segurar algo, me agarrar a não sei o quê. Continuo tentando sentir como é ser essa pedra, rígida, fria, imóvel… Sinto meu corpo pesado, pesado, pesado… Sento no chão, me sinto ainda mais pesada… Deito no chão… Começo a relaxar… Para minha surpresa, percebo que a pedra, na verdade, não faz esforço nenhum… Não existe tensão… Me sinto totalmente relaxada, imóvel, estável, em contato com a segurança da terra… Sinto uma enorme tranquilidade interna, muita serenidade e calma… Uma qualidade de presença equilibrada, harmoniosa e centrada, em equilíbrio e constância.
De repente, me vejo sendo esta pedra no fundo de um rio… Sinto as águas agitadas e caudalosas passando sobre mim… Sinto a água na minha pele, na minha superfície, mas ela não me abala, não afeta meu estado de permanência e imperturbabilidade… Mantenho este estado de firmeza e tranquilidade interna enquanto ao mesmo tempo aprecio as águas passarem. Tenho consciência do todo: da pedra, das águas e do rio. É uma sensação maravilhosa!
Quero me lembrar desta imagem no meu dia a dia. Lembrar que sou também a pedra no fundo do rio, quando me percebo em pensamentos caudalosos e agitados, com sentimentos de ansiedade e tensão. Sou o rio e sou também a pedra no fundo do rio.
Me levanto e já não tenho mais a tensão no pescoço.
*
Estar vivo é sentir
Reconexão
A folha seca da tristeza cai da árvore.
Com pesar, dança pelo ar
carregada pelo vento do destino até chegar no chão.
Não há nada que possa fazer para evitar sua sina.
O mundo e a dor do mundo são maiores do que ela.
Se recosta, impotente, prostrada e cansada sobre a terra.
Sem esperança, se entrega ao seu definhar.
Começa a dissolver, desaparecer, desintegrar…
Porém, sua extinção se torna gênese:
A morte é também renascimento.
Sua decomposição é nutrição, adubo fértil e potente.
Deixa de ser folha para se unir ao todo.
Se torna Gaia, Pacha Mama, planeta Terra,
Sustentando o ciclo da Vida.
Esses dias escrevi este pequeno texto acima, pensando no ciclo da vida e na dualidade que a constitui: nascimento e morte, alegria e tristeza, saúde e doença, celebração e luto.
A tristeza é o sentimento que mais tem me acompanhado neste momento de pandemia e também na vida em geral.
Me afeta muito a desigualdade e a injustiça que vejo no mundo, decorrentes da forma como nos estruturamos socialmente ao longo da história: uma civilização baseada em sistemas de dominação onde as coisas são consideradas mais importantes do que as pessoas e a vida de alguns é mais valorizada que a de outros. Uma cultura patriarcal, capitalista, machista, racista e misógina que oprime milhões de pessoas de diversas maneiras.
Com o coronavírus toda essa desigualdade se exacerba ainda mais e cresce em mim uma sensação de impotência e desespero. O mundo e a dor do mundo são maiores do que eu.
Para muita gente a morte se tornou mais próxima neste momento. O medo da perda e o luto estão mais presentes, às vezes concretamente e outras no imaginário e na subjetividade das pessoas.
Muitas vezes noto em mim e nos outros que para evitar o sofrimento tentamos deixar de sentir, e quando fazemos isso é como se nosso coração parasse de respirar, como se começássemos a viver pela metade.
Não tenho dúvida de que sofrer significa SENTIR intensamente. E é justamente este sentir profundamente, principalmente de maneira consciente, que nos abre para a experiência da vida em sua totalidade. É nossa capacidade de sentir plenamente que nos revela o significado do que vivemos.
A celebração e o luto, a gratidão e o lamento, são dois lados da mesma moeda. Não é possível sentir um sem sentir o outro. Quando bloqueamos nosso medo, bloqueamos junto nossa coragem. Se não quero sentir minha fragilidade, deixo de sentir também minha força. Se não me conecto com minha impotência, não conheço também meu poder. A perspectiva da morte me faz valorizar e agradecer a vida.
Me conectando profundamente com minha tristeza (aquela folha seca que cai da árvore), consigo perceber sua transformação em algo novo, potente e transformador. Consigo me reconectar com a vida e encontrar maneiras de contribuir para a mudança que quero ver no mundo.
Assim como o nosso respirar se faz de inspiração e expiração, para viver inteiramente precisamos tanto dos nossos sentimentos agradáveis quanto dos desagradáveis.
Busque se lembrar de um momento recente em que você sentiu alegria e o que lhe abriu para esta experiência. Depois, lembre-se também de um momento recente de tristeza e o que lhe abriu para este sentimento. Deixe cada respiração silenciosa unir esses sentimentos da mesma forma que os rios se unem ao mar… não tente separá-los, sinta sua alegria e sua tristeza se misturarem na profundidade do seu ser…
Da mesma forma que nossos pulmões se nutrem de ar, nosso coração se nutre de nossas experiências emocionais, que nos ajudam a encontrar sentido na vida. Estar vivo é sentir!