Duas crônicas e cinco poemas de Fernanda Padilha
Fernanda Padilha. Advogada, escritora, professora, especialista em Direito de Família e Doutoranda em Direito Civil pela Universidade de Buenos Aires, Argentina. É Colunista do Portal Sorocaba, escritora do Projeto Cultural Útero e autora de artigos jurídicos que tem como pauta a desigualdade de gênero.
Escreve sobre o feminismo, amor, viagens arte e tudo que causar uma “coceirinha” na língua.
Se considera paulistana com síndrome de carioca. Vive na selva de pedras, mas tem um desejo nada secreto de arrastar umas havaianas no calçadão de Ipanema.
É amante da arte e defensora dos emocionados. Acredita no poder desmistificador das palavras e na força revolucionária do afeto.
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O óbvio não beija todos os olhos
Do latim obvius, refere-se aquele cujo teor é de fácil entendimento, que salta aos olhos de forma clara e evidente.
Mas, o que é de fácil entendimento? O que salta aos seus olhos podem alcançar os meus?
Hoje, as pessoas vivem atreladas a ideia de que o que está claro não precisa ser dito. Que o silêncio é uma mensagem. Que o que se demonstra não necessita ser verbalizado.
Eu discordo. Discordo não só porque sou pateticamente apaixonada pelas palavras, mas porque para mim tais teorias são apenas esconderijos mais aconchegantes.
Nos apegamos fielmente à ideia de que o universo se encarrega de todos os nossos desencontros, encarregando a ele a nossa covardia.
Criamos as mais variadas crenças do desapego por medo da exposição. Por medo de falar o que sentimos. Por medo de verbalizar o óbvio.
Para mim, as palavras que soterramos são casadas com todos os “se (s)” que nos assombram durante a vida.
“Se” eu tivesse dito. “Se” ela sentisse o mesmo. “Se” ela não tivesse se afastado. Se…
O óbvio não beija todos os olhos. O óbvio não desfaz todos os nós.
Se as pessoas aprendessem a verbalizar o que sentem o mundo seria, finalmente, arte do encontro. Se o que doeu fosse dito, haveria a possibilidade do reparo. Se nos despíssemos do “óbvio”, existiriam mais amores correspondidos.
Condenem-me os adeptos ao silêncio, mas…
Eu ainda fico com a luz das palavras!
O óbvio precisa ser dito.
*
O Rio é um sentimento
Contrariando a geografia, eu diria que o Rio não é uma cidade. O Rio é um sentimento. Uma espécie de paixão autossuficiente e compulsória que contraria a química do meu corpo e nasce em poros diferentes toda que vez que a gente se encontra.
Ele tem uma mania abusiva de me fazer olhar para vida. É que São Paulo me engole e o Rio prefere que eu mastigue 30 vezes. Deguste. Saboreie. Uma tática ardilosa e precisa que posso chamar de “viver”.
Tem uma malícia que canta bossa no pé do ouvido e uma voz feminina que me diz que o amor pode esperar mais um samba.
Gosta de me chamar para arder às manhãs. Um convite irrecusável para maratonar meus olhos nos exercícios alheios. Yoga. Surf. Boxe. Vôlei. Beach Tennis. No posto 6 tem uma senhora frenética dançando um hit do “furacão 2000”. Pausa. Água de coco. Açaí com espuma de leite ninho. É 9 da manhã e seu Zé diz que já pode descer uma breja. Pô, Rio.
As Ruas cariocas falam comigo. O poste disse que o amor atrai. A parede de Santa garantiu que é a nossa meta encontrar o fogo e mantê-lo acesso. A cantora do Portella tinha voz mansa e fazia do pandeiro violão. Era apenas 13:35 e eu já estava ardendo vida. Caipirinha de Caju e caldo de feijão preto em uma xícara branca do Jobi.
Tem maresia boêmia. Cidade e serra. Mas entre um prédio e outro quem arranha o céu é o Pico da pedra branca. O Rio também cheira arte e talvez por isso ele é quase um rapaz descolado para mim. É tão artístico que chego a concluir que não é arte que o alimenta e sim o contrário.
O Rio é um samba a dois. É o tipo que sabe dar beijo no cangote que arrepia. Que te segura forte na cintura, mas também tem a doçura de te chamar para se deitar no peito e ouvir batimentos livres.
O Rio é dopamínico.
*
Brasileira
Sou fevereiro o ano inteiro
sou o tambor afro que grita por liberdade
sou quem canta a gira, quem nunca entrega os pontos
sou quem seduz a vida.
Sou de todas as cores
sou negra, indígena, asiática ou galega.
sou menina carioca da gema
Sou cafuné e cheiro no cangote. Sou beijo pra dar sorte
sou corpo no corpo e passinho de dois
sou quem não tem medo do toque.
Sou futebol de rua
boteco de esquina
sou o samba que namora as nossas meninas
Sou fim de tarde no arpoador
Caetano, Vinícius e 40 graus.
sou bossa nova e primeiro amor
Sou pele e alma salgada
a fusão de todas as cores
o beijo da maresia com a mata
Sou prosa e cafézinho num fim de tarde
açaí na tigela e arroz com feijão
Sou Tarsila,
sexo, amor e arte.
Sou “o caso sério” entre os quatro continentes
quem dança, canta e contagia
Sou primeira aa dama do carnaval e a amiga íntima da folia.
Sou a Seiva do Amazonas, prole tupiniquim
moça da Terra de Santa Cruz,
mina da capoeira,
fruto do mundo
Sou brasileira.
*
Puta, santa, livre
Fragilidade imposta, perna fechada
moça bonita é moça calada
Salto alto, bom tom
te querem muda, surda, sem som.
Mas, hoje, te quero louca
puta, santa, livre
menina solta
Te quero devota do seu próprio amor.
*
Prazer, Joana D ‘Arc
Camponesa de Domrémy
vendada pelo catolicismo
virgem de Orleans
fruto da guerra
Sou a marcha de cinco mil homens guiados pela minha fé
Sou o patriotismo casado com a Igreja
donzela que traja armadura
a coragem que liberta a França
Sou a coroa do Delfim.
Rasguei meu vestido, cortei meu cabelo.
não esperei o príncipe do cavalo branco
eu montei nele sozinha
e liderei um exército
Eu sou a liberdade do meu povo
a repulsa dos Ingleses
o reinado de Carlos VII
Sou a devoção do guerreiro francês.
Com a bandeira branca em uma mão e espada na outra
eu trouxe a glória, mas nasci mulher
Capturada e exibida na estaca
fui amaldiçoada pelos olhos de Rouen
Libertina, bruxa, herege.
o fogo comeu meu corpo
minha alma beijou Sena
demoníaca ou Santa
eu ainda vivo
Prazer, Joana.
*
Vinho, Frida e um abismo que chamo de rapaz
É tarde.
Tenho na mesa uma taça de vinho, o resto da erva e uma gata que coloquei o nome de Frida a ronronar.
Hoje é dia primeiro e vou de encontro com tudo torna-se o início. Eu sei que você é.
Em contramão as cartas, o óbvio e o racional, você simplesmente é o começo de um novo abismo.
E não sei o porquê, meu rapaz, eu vou consciente para o precipício.
*
Sobre o dia 17, sobre Chica
[…] No dia 17 de outubro de 1847 nasceu a mulher que desdenhou dos pseudônimos masculinos e fez da sua vida amorosa teatro sem censura para a sociedade patriarcal.
Neta de escrava, compositora e pianista
Francisca é dona de muitas faces
ou, contrariando o ditado,
eu diria que todas as faces têm Chica.
A primeira maestrina mulher,
mãe, professora, militante e abolicionista
mulher que zomba dessa sociedade opressora
e que da vida foi a sua própria protagonista
Francisca Edwiges Neves Gonzaga
aquela que tragava tabaco em roda de samba,
que rompia padrões,
que deu voz ao carnaval e canto foliões.
Para você, abro, veneravelmente: ALAS.