“Em busca da América” de Anne Tyler – Por Andri Carvão
“O canal que mantenho no YouTube desde outubro de 2021, Poesia Nunca Mais, onde indico livros e compartilho algumas de minhas leituras, deu margem a que eu escrevesse minhas impressões de leituras como roteiros para a realização dos vídeos. A princípio em forma de tópicos, resolvi organizar os escritos de modo a que pudessem ser lidos em algum meio: blog, rede social, site etc. Com a apreciação sobre Em busca da América de Anne Tyler prosseguimos com a coluna “Traça de Livro: …impressões de leitura…”.
Vida longa à Ruído Manifesto e aos seus leitores!”.
Andri Carvão é formado em Letras pela Universidade de São Paulo, autor de Um sol para cada montanha, Poemas do golpe, Dança do fogo dança da chuva e O mundo gira até ficar jiraiya, dentre outros. Apresenta o canal no YouTube Poesia Nunca Mais e publica poemas quinzenalmente no site O Partisano.
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Em busca da América | Anne Tyler
No romance Em busca da América, publicado em 2006 pela escritora norte-americana Anne Tyler (1941-), narrado em terceira pessoa, temos dois casais no aeroporto de Baltimore à espera da chegada de suas crianças adotivas, ambas provenientes da Coreia. Um casal é americano, Bitsy e Brad Donaldson, e o outro iraniano, Ziba e Sami Yazdan. Yazdan, sobrenome americanizado de Zahedi. A menina Sooki tem seu nome coreano adaptado pelo casal iraniano para Susan, tendo em vista a proximidade sonora com o nome ocidental. Já o casal americano prefere manter o nome original em coreano para o bebê Jin-Ho.
O primeiro choque cultural se dá com relação a intolerância à lactose por parte de Jin-Ho, pois “não era da tradição asiática beber litros de leite”. (p. 28) Outro tem relação quanto aos costumes modernos da cultura americana e a tradicional cultura do oriente médio.
“As crianças usavam o familiar “você” quando falavam com os pais; eram barulhentas, sem modos e desrespeitosas. As adolescentes exibiam as barrigas nuas.” (pp. 45-46)
A vinda das crianças ao solo americano é comemorada anualmente na festa do Dia da Chegada, marcando não a data de nascimento, mas exatamente a data da chegada dos bebês.
Os casais mantêm contato por conta da adoção e revezam entre si o local para a festa do Dia da Chegada todos os anos. Nesses encontros familiares nos deparamos com diálogos como este:
“– Vejam como Jin-Ho parece bronzeada perto de Susan – observou Ziba. – Nós achamos que o pai de Susan talvez seja branco.
– Sim, você é branquinha como um dentinho de nenê – disse Dave a Susan, mas Bitsy imediatamente acrescentou:
– Ah! Sim! Mas na verdade não é uma coisa que se daria para notar!” (p. 30)
A preocupação estética perpassa praticamente toda a narrativa. Tornar os traços orientais o mais próximo possível dos americanos se faz premente de modo a adaptar as crianças ao novo país e à sua cultura.
““Los Angeles tem um cirurgião plástico que faz os olhos dos chineses ficarem tão bonitos como os ocidentais”, ela escutou a esposa de Ali dizer a Ziba esta manhã. “Posso conseguir alguns nomes, se você quiser.”” (p. 39)
O casal iraniano não encontra oposição de suas famílias ao decidirem adotar uma criança. O mesmo não se pode dizer com relação ao casal americano.
“– Os pais de Brad demoraram um pouco para aceitar. Não os meus; os meus sempre estiveram completamente a favor. Mas Brad era filho único e seus pais eram mais… não sei; talvez estivessem preocupados com a linhagem ou algo assim.” (p. 40)
Há uma contextualização sobre a história política do Irã, tendo como ponto de partida aqueles que apoiavam o xá e os que não apoiavam. “Se pelo menos seu pai tivesse vivido para ver a derrocada do xá!” e mais adiante: “Ele amava seu país. Sempre pensou que um dia voltaríamos para lá.” (p. 44)
A distância dos imigrantes com relação a seu país de origem e daqueles que permaneceram por lá se mostra um obstáculo para estreitar os laços afetivos, mesmo com o avanço da tecnologia para a comunicação. O casal iraniano em território americano, ao longo dos anos, não deixa de ser informado via telefone sobre a morte de parentes: mãe, tias-avós, tias, tios.
Anne Tyler faz uso de vocabulário da língua farsi (língua persa, idioma do subgrupo das línguas iranianas), principalmente com referência à culinária iraniana:
“Salaam aleikum” (expressão árabe utilizada pelos muçulmanos que significa “que a paz esteja convosco”), “fesenjan” (ensopado de carne, prato típico do norte do Irã), “khoresh” (refeição), “polo” (arroz), “ghormeh sabzi” (ensopado de ervas, prato nacional do Irã) e “kebab” (espeto de carne entremeado por vegetais).
Há também um foco narrativo intermediário sobre a avó de Susan, Maryam Yazdan, por conta da história de amor titubeante entre ela e um homem mais jovem. “Alguma vez você já se sentiu exposta por não ser a metade de um casal?” (p. 175) Romance que a avó custa a assumir ou mesmo a dar início, devido a diferença de idade entre os dois (afinal, o que os outros vão pensar, não é verdade?) e pelo fato de estar viúva há tantos anos de Kiyan que era nove anos mais velho do que Maryam.
“– Ora, por que não? Você é sozinha; ele é sozinho…
– Eu sou iraniana; ele é americano…” (p. 177)
Ziba sugere que eles não precisam se casar, mas que poderiam só ir para a cama. Por que não? Maryam acha um absurdo e leva a pecha de Madame Irã, tachada pela nora como se fosse uma espécie de terrorista pós-11 de setembro. Na verdade, pelas costas, Maryam é chamada de Khanom (Sua Alteza). Afinal, “ela não partira como um desses iranianos que vêem a América como a Terra Prometida.” (p. 183)
Dave, o jovem americano enamorado, é pego ouvindo um LP de música iraniana da cantora Shusha, a favorita de Maryam.
Para além do tema da adoção, pelo fato da origem das crianças adotivas ser um país culturalmente tão diverso dos EUA, temos também a discussão a respeito das diferenças culturais e a xenofobia.
“– Você viu como as pessoas se afastavam de Sami e Ziba e de mim no aeroporto esta noite? Não, você não deve ter visto. Você nem teria reparado. Mas é assim que tem sido desde o 11 de setembro. Ah – ela disse – às vezes fico tão cansada de ser estrangeira que gostaria de me deitar e morrer. Dá muito trabalho ser estrangeira.” (p. 208)
Ao contrário dos adultos, os bebês estrangeiros não precisarão se adaptar, eles serão naturalmente assimilados. Embora sempre carregarão sua origem através de seus traços.
“Num futuro não muito distante, os imigrantes vão ser a nova elite deste país. Isso porque eles não carregam nenhum peso de culpa. Seus antepassados não roubaram nenhuma terra dos nativos americanos e eles nunca foram proprietários de escravos. Têm a consciência perfeitamente limpa.” (p. 116).
Por fim, o casal americano, Bitsy e Brad Donaldson, adota outra criança, Xiu-Mei, de naturalidade chinesa.
No romance Em busca da América, onde o multiculturalismo é apresentado através do encontro em solo americano entre americanos, iranianos e coreanos, ocidente, oriente-médio e oriente, Anne Tyler expõe as idiossincrasias da chamada globalização, a precária tentativa de uniformizar o mundo.
Edição lida:
TYLER, Anne, Em busca da América, 319 p., tradução Maria José Silveira, Rio de Janeiro: Record, 1ª edição, 2007.