Entre a artificialidade das barbies e a complexidade da realidade do resto de nós – Por Ariadne Marinho
“À deriva. E a flexão de um verbo, ‘derivar’. É a partir dessa imprecisão, ou da conjunção de várias imprecisões, que propomos problematizar os atravessamentos que compõem o ser e o devir. Os modos de ver e de estar no mundo”.
Ariadne Marinho é historiadora, pesquisadora e mãe de Dionísio e Tom. Cuidadora da gata-idosa Cavalo de Fogo e da jovem cachorrinha Frau Caramello. Doutora em História pela UFMT.
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Entre a artificialidade das barbies e a complexidade da realidade do resto de nós
Neste mês da mulher, março, eu gostaria de escrever sobre coisas felizes e agradáveis. Porém, na sexta-feira, dia 8, o site do G1 publicou uma matéria cujo chamado é chocante: “O estado de Mato Grosso registrou a maior taxa de feminicídios do país, com 2,5 mortes para cada grupo de 100 mil mulheres”[1]. Deve-se lembrar que em escala mundial o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking de feminicídios, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH)[2]. A triste realidade da mulher impõe uma reflexão séria e contínua. É por essa razão que demorei tanto para – aceitar e finalmente – assistir ao filme estadunidense “Barbie” (2023), de Greta Gerwig.
O longa é didático e, talvez por isso, bastante superficial ao abordar a condição das mulheres e o patriarcado. O filme não propõe uma discussão de classe, raça, gênero, corporal ou social. Faz uso da sátira e do humor com uma dose de fantasia da infância (atrelado ao consumismo), com os cenários idênticos aos dos brinquedos vendidos ao longo de algumas gerações. Eu realmente não sei se nunca gostei da barbie ou se minha mãe solo nunca teve dinheiro para comprar uma para mim. Ter a boneca – e seus acessórios – estava atrelado a certa situação econômica, que nós em casa jamais tivemos.
O enredo da obra de Gerwig expressa a superficialidade da boneca: tudo é igual na Barbieland. Os dias são uma eterna repetição: de sorrisos, gestos, atos. O filme começa quando a Barbie Estereotipada (Margot Robbie) tem uma visão, uma espécie de premonição. E então questiona-se. Tal questionamento acompanha pensamentos intrusivos e uma assustada impressão de morte. Logo e gradualmente ela percebe que a vida perfeita não é assim tão real. A Barbie Estereotipada – a primeira, a perfeita, materialização de uma projeção genuinamente masculina, o corpo que sai do imaginário dominante dos homens –, portanto, dá-se conta de que tanto ela própria quanto as outras Barbies vivem sob padrões corporais impostos, impossíveis e inalcançáveis. Tudo é artificial: os sorrisos, os gestos, as relações (por exemplo, o seu namoro fake com um raso Ken). Deriva daí uma crise existencialista que estimula o seu desejo de ‘furar a bolha’ e sair daquela terra prometida, partir da barbielândia em busca de respostas no ‘mundo real’ dos criadores adultos e das crianças “brincantes”.
O filme não discute como a boneca Barbie sintetiza e alimentou – por muitas décadas, a cada nova geração – um modelo fantasioso de comportamento e de beleza, de fato intangíveis para a maior parte daquelas que orbitam o universo feminino. Para muitas crianças, gera-se aí – junto com a impossibilidade financeira de adquirir um exemplar do brinquedo – um quadro de profunda frustração, depressão. Não ter e não ser igual à Barbie torna-se um problema de saúde: causando ansiedade, anorexia, bulimia, entre outras patologias. Isso é sério.
Alguns dias atrás fui levar as/os discentes de uma sala de aula para lanchar (na escola em que eu trabalho existe um horário próprio para o lanche e outro para o intervalo, e isso é bacana. Porque garante que as/os estudantes possam se alimentar e se socializar de maneira mais adequada, sobretudo àqueles que vem dos sítios e zonas rurais ao redor do município). O cardápio era lasanha, o cheiro estava delicioso. O período para o lanche dura apenas 10 minutos. Todos os meninos já tinham terminado e estávamos esperando as meninas. Elas repetiam e ainda pediam as porções daquelas/es que não fossem comer. Confesso que fiquei surpresa ao ver a cena. Afinal, ingenuamente pensei que elas não ligavam para a magreza, para o padrão de beleza dominante. Ledo engano, na volta para a sala juntei-me ao grupo de meninas e então descobri uma realidade chocante: a origem da glutonaria estava num jejum intermitente, sem acompanhamento, radical. Algumas disseram que fazia “um dia” que não se alimentavam; outras alegaram passar “quatro dias sem sequer beber água”. Afirmaram, ademais, que com esse tipo de dieta poderiam perder entre 2 e 7 quilos por semana (!). Tudo para alcançar o “corpo ideal”, vale dizer, o corpo da Barbie.
As minhas alunas eram todas adolescentes médias, não apresentavam obesidade. Mas a indústria fílmica, de cosméticos, de brinquedos, representações do patriarcado, fomentam esse padrão nocivo à mulher, objetificando-a. A mulher é um corpo, um corpo magro. O filme Barbie é autoindulgente e, em certos momentos, até zomba dessa indústria. Contudo, sua crítica é perfunctória, breve, e perpetua o estereótipo da beleza magra, branca e misógina. É hipocrisia da minha parte, no entanto, abordar a situação de algumas de minhas alunas sem uma reflexão mais abrangente de como o ideal de um corpo (o corpo ideal) afeta emocional e psicologicamente (no íntimo, ainda que inconfessadamente) as mulheres. Não conheço uma única de nós que não esteja em ou não queira começar uma dieta, fazer exercícios, ficar gostosa… para quem?
Notas