Entre elas, entre nós – Por Ariadne Marinho
“À deriva. E a flexão de um verbo, ‘derivar’. É a partir dessa imprecisão, ou da conjunção de várias imprecisões, que propomos problematizar os atravessamentos que compõem o ser e o devir. Os modos de ver e de estar no mundo”.
Ariadne Marinho é historiadora, pesquisadora e mãe de Dionísio e Tom. Cuidadora da gata-idosa Cavalo de Fogo e da jovem cachorrinha Frau Caramello. Doutora em História pela UFMT.
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Entre elas, entre nós
Acaba de ser publicado, pela Editora Alta Performance, de Goiânia/GO, a instigante e urgente coletânea feminina, Entre elas: escritoras Mato-Grossenses em uma perspectiva interdisciplinar[1], organizada pelo professora-doutora, Gislei Martins de Souza Oliveira, servidora do Instituto Federal de Mato Grosso, campus Fronteira Oeste/Pontes e Lacerda, atuante na área de língua portuguesa. Uma obra urgente e doravante incontornável para aquelas/es que aspiram conhecer a literatura universal matogrossense, nomeadamente a realizada por mulheres. Por isso, ao receber o convite para elaborar o prefácio, titubeei. Eu deixava falar mais alto, sem dúvida, os medos e as incertezas que habitam o meu ser até o último fio de cabelo. E que toda mulher carrega, em maior ou menor grau, em um mundo predominantemente patriarcal e misógino. No entanto, a antologia que ora se apresenta é uma ode à resistência e sublevação feminina. O que implica também uma boa dose de coragem, já que nos encontramos em tempos nebulosos, de ataques sistemáticos contra as ciências e as minorias e, claro, contra as questões de gênero. Com um título imponente e sugestivo, escrito por e sobre mulheres – embora não se dirija exclusivamente a elas –, alegrei-me afinal e, com a leitura, superei a hesitação. Com o contentamento do chamado e a indignação diante das injustiças do mundo, com grande satisfação fui “borrando o papel”. Aí surgiam rascunhos, rasuras, ideias incompletas, em meio a experiências revividas de dor e superação. Ser mulher não é para qualquer um.
Aliás, o que é ser mulher? É nadar contra a corrente? O que é ser mulher que escreve? Mulher-artista, escritora? E que produz conhecimento acadêmico-científico? É alimentar angústias, sentir a insegurança, questionar-se, ser questionada, afrontada, agredida, ter dúvidas de si, tudo como consequência devastadora de um aparato estrutural de longo alcance, vale dizer, de séculos de opressão, de silenciamentos, de morte. É, por isso, realmente notável o empenho por protagonismo, seja na academia, seja na vida, destas mulheres que aqui se tornam autoras e personagens, sujeitos de análise e analistas, num intercâmbio, perseverando dentro de uma sociedade que reiteradamente tenta cristalizar um referencial feminino subalterno, condicionado socialmente à maternidade, e determinado por um padrão de beleza irreal. Neste livro coletivo, composto por sete capítulos, as/os autoras/es exercem o ofício da escrita com leveza e segurança. Possibilitam, deste modo, a construção de debates acerca da produção literária de escritoras mato-grossenses, do presente e do passado: algumas ainda pouco conhecidas e estudadas pelo público universitário; já outras, célebres e renomadas internacionalmente. Daí sua pertinência e a importância sem igual: por meio de sua exegese, tornar acessível o trabalho de mulheres escritoras, artesãs da palavra livre, que conferem significado material ao verbo “resistir”. Ora, para nós, mulheres, existir não é senão um ato de pura resistência. E para a literatura brasileira não canônica, idem. Na história social do nosso país, tudo o que não é mar, é margem. É periferia, sertão. Como, em seu artigo, observa Alda Maria Quadros do Couto,
Ressurgiu uma tamanha surpresa de não haver surpresa nenhuma em mais uma constatação de que a Literatura Brasileira não conhece a Literatura Brasileira. Muitos nomes desconhecidos, muitos livros pouco lidos, isso é a verdadeira Literatura Brasileira. Os outros nomes, ditos conhecidos, mas talvez não tão lidos também, fazem parte de um cânone que não se deixa tocar pela realidade, para o bem e para o mal (QUADROS DO COUTO, 2023, p. 58)[2].
Outro fio que enreda as mulheres deste estudo é tanto o destino quanto o pertencimento. Originárias desde dentro de um país profundo, uma nação plural, feita de povos e terras interiores – cujas dimensões tão vastas congregaram outrora e ainda congregam infinitas outras nações; muitas já desaparecidas pela ação colonizadora –, seu destino, no entanto, não pertence ao regional. Nem ao cânone, nem ao patriarcado. “Se queres ser universal, cante sua aldeia”, advertia Leon Tolstoi em um período em que as vozes eram essencialmente masculinas. Contudo, nosso corpo é rebeldia, insubordinação. E as mulheres que aqui escrevem demonstram a potência estética e a universalidade artística das mulheres sobre as quais se escreve. Do privilégio da memória como substância poética, ao esforço de captura do tempo e a busca pela identidade em percursos físicos e afetivos, os capítulos que seguem não apenas articulam “o variado, completo e complexo quadro da literatura brasileira” (QUADROS DO COUTO, 2023, p. 64), em especial a mato-grossense, como a insere de fato em uma perspectiva realmente universal, cosmopolita, dentro de um mundo que se expande ininterruptamente e não cessa de alargar-se. Falo, claro, do país de Mato Grosso. Mas, também, e de maneira ainda mais enfática, do país das mulheres-escritoras, mulheres-artistas.
Desejamos a cada uma/cada um, uma experiência de leitura inigualável. Boa aventura!
NOTAS
[1]OLIVEIRA, Gislei Martins de Souza (org). Entre elas: escritoras Mato-Grossenses em uma perspectiva interdisciplinar. Goiânia: Editora Alta Performance, 2023.
[2]Consultar o 3º capítulo da referida coletânea.