Entre o lírico e o dramático: a urgência em Ana C. (de ser tantas) – um ensaio de Maria Beatriz Thibes
Maria Beatriz Thibes é graduada em Letras pela Universidade de São Paulo. Em 2016, realizou intercâmbio na Université Paris-Sorbonne IV (Paris, França). Voltou com o desejo de se lançar (mais) e ainda vez mais: ao outro. Aproximou-se, então, da escrita: participou, no ano seguinte, do CLIPE (Curso Livre de Preparação do Escritor), oferecido pela Casa das Rosas, na categoria ensaio. Atualmente é professora de francês. Continua com o mesmo desejo. Desejo bem elaborado pelas palavras de Clarice Lispector (e que elaboram o meu – elaboram-me) em seu livro de crônicas: A descoberta do mundo: “meu caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada.” (LISPECTOR, 1999, p. 119)
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Entre o lírico e o dramático: a urgência em Ana C. (de ser tantas)
Não encontro
no meio de todas essas histórias
nenhuma que seja a minha
Nenhum desses temas me consola.
Espero ardentemente que me telefonem.
Espero que a chuva pare e os trens voltem a circular.
Espero como se estivesse em Lisboa
e sentisse saudades de Lisboa.
Bateriam à porta, chegariam os parentes queridos, mortos
[recentes,
e não me dou por satisfeita. Mas os figurinos na noite de
estreia! imediatamente antes!
A goma, o brilho no camarim!
CESAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 280
O poema se inicia com uma negação: “Não encontro”. Negação que se traduzirá, podemos talvez pensar, em afirmação de um estado de busca. Busca que, não muito depois, já se revela: “Não encontro / no meio de todas essas histórias / nenhuma que seja a minha./ Nenhum desses temas me consola.” O eu-lírico não encontra e continua não encontrando (mas busca). Busca entre histórias outras, alguma que seja sua. Busca entre temas outros, algum que o console.
Esse “continuar não encontrando” o mantém na busca. E enquanto se busca, se está em movimento (a princípio). O movimento de busca dos quatro primeiros versos, no quinto, eclode em espera. E a espera, no mais das vezes, paralisa. Saltamos, então, de um eu-lírico que circula enquanto busca (se busca), para um eu-lírico que estaciona e deseja (ardentemente) estabelecer contato. Contato que, dessa vez, não se manifesta a partir dele, mas a partir de outro (de outros): “Espero ardentemente que me telefonem.”
O eu-lírico busca. Busca-se em meio a outros. Outros que (ainda?) parecem não estar em primeiro plano: não sabemos se, de fato, algum contato se estabelecerá, mas o que nos é dado – e arde – é a espera: “espero ardentemente” (“que me telefonem”). Nesse sentido, um verso parece se quebrar em dois, cujo primeiro “independe” do segundo (mas não o excluí).
Se seguirmos o primeiro, permaneceremos nele. Permaneceremos na espera. Espera que não se torna passado. Espera contínua que prevalece no verso seguinte: “Espero que a chuva pare e os trens voltem a circular.” A chuva e os trens – que não circulam – se fundem à espera do eu-lírico, se fundem ao seu –estado– de espera. Talvez haja mesmo o desejo de que a “chuva pare e os trens voltem a circular”, talvez haja mesmo esse olhar para fora, mas um fora que é espelho da espera (do estado de espera, de espírito). A chuva, nesse sentido, evoca não o acontecimento objetivo, mas a subjetividade, o estado de alma do eu-lírico: inconsolável. Inconsolável por não saber se pode vir a ser: chegada. E, por enquanto (enquanto os trens não circulam), tampouco partida.
Há no verso próximo, no entanto, algo que já partiu antes mesmo de ter partido. O eu-lírico ainda está e já não está mais: “Espero como se estivesse em Lisboa / e sentisse saudades de Lisboa.” A espera prevalece e padece (faz padecer) o eu-lírico num presente-futuro. Nota-se aqui, com efeito, um estar entre o tempo lírico (tempo que é, nas palavras de Anatol Rosenfeld, um “momento eterno” (p. 23)) e o tempo dramático:
O tempo dramático não é o presente eterno da Lírica e, muito menos, o pretérito da Épica; é o presente que passa, que exprime a atualidade do acontecer e que envolve tensamente para o futuro (ROSENFELD, 2004, p. 34).
Essa condensação de tempos nos versos sete e oito parece condensar a urgência que ronda todo o poema. Urgência de um eu-lírico que se expressa desde o início e, também por isso, podemos dizer que pertence à Lírica:
Pertencerá à Lírica todo poema de extensão menor, na medida em que nele não se cristalizarem personagens nítidos e em que, ao contrário, uma voz central – quase sempre um “Eu” – nele exprimir seu próprio estado de alma. (…) Notamos que se trata de um poema lírico (Lírica) quando uma voz central sente um estado de alma e o traduz por meio de um discurso mais ou menos rítmico (ROSENFELD, 2004, p. 17).
O poema de Ana Cristina Cesar é de curta extensão, não apresenta personagens nítidos e, com efeito, contém uma voz central que exprime seu próprio estado de alma, mas se lança (quer se lançar) a outro, a outros (seres e tempos).
Até o verso oito, a presença do pronome –eu– prevalece. No nono, são “eles” que surgem. Mas assim que o desejo de estabelecer diálogo (re)aparece, ele se rompe: “e não me dou por satisfeita.” O eu-lírico não se dá por satisfeito. E a insatisfação é dada tão logo esse outro – esses outros – aparecem mais claramente: os que “bateriam à porta”, “os parentes queridos” que chegariam. O que vem a seguir: “mortos recentes”, se tomado como enunciação vinda desses parentes que “bateriam à porta”, parece notícia: bateriam à porta e lhe dariam um recado sobre pessoas que morreram recentemente. Por outro lado, parece também ser enunciação do próprio eu-lírico: enunciação-declaração de que os parentes, esses que chegariam, estão (são) mortos para ela: não são (somente) eles sua procura.
O diálogo se rompe e perdura: há quebra com o desejo de lançar-se ao outro e, logo em seguida, o desejo de se fazer outro: “Mas os figurinos na noite de estreia! / “imediatamente antes! / “A goma, o brilho no camarim!”. Quer dizer: a oração “Mas os figurinos na noite de estreia!” (re)inicia um diálogo: o reconfigura. Reconfigura na medida em que caminha em direção a outros, mas, além (aquém) de um outro (outros) que se procuram fora, se lança em direção a um outro que se procura dentro: outros de si mesmo: outras de si mesma. O eu-lírico não se dá por satisfeito e se rompe, se transfigura, se mascara, e “os figurinos na noite de estreia”, “a goma, o brilho no camarim” surgem como possibilidade. Possibilidade de ser tantas. Impossibilidade, contudo, de se encontrar. Fecha-se uma busca: abrem-se várias. O eu-lírico extrapola, transborda e, ao não caber mais em si, tem de ir em direção a outros. Tem de ocupar outros corpos. Estabelecer diálogos:
O que se chama, em sentido estilístico, de “dramático”, refere-se particularmente ao entrechoque de vontades e à tensão criada por um diálogo através do qual se externam concepções e objetivos contrários produzindo o conflito (ROSENFELD, 2004, p. 34).
Mesmo que não haja personagens nitidamente caracterizados e explícitos no poema, nota-se um diálogo. Diálogo que talvez seja estabelecido com outros de si mesmo (outras de si mesma), mas, não por isso (e, aliás, longe de o ser), isento de conflito.
Nesse sentido, o poema adquire tom dramático que, bem possível, é o tom que alavanca e intensifica o estado de urgência do eu-lírico. Um eu-lírico que está entre (si e outro(s)) e, por isso mesmo, estabelece – não definições, mas indefinições: aberturas, lacunas, fissuras. Fissuras essas que incitam invasão. Uma invasão como tentativa, adentramento. Tentativa de cumplicidade e diálogo também com o leitor: é difícil nos mantermos por muito tempo na leitura de Ana Cristina Cesar sem nos desviarmos. Sem dialogarmos com nossos desvios. Desvio-aqui, desvio-cá: para dentro de si mesmo. Para lugares outros já experimentados – (re)experimentados – no instante da leitura. Instante esse que, no mais das vezes, revela um estado de urgência. Urgência que deixa o papel e se transfere ao corpo, ao nosso corpo: não se passa os olhos pela escrita de Ana C. Não se passa –só– os olhos. Passa-se. E junto, o corpo. Somos atravessados. E, agora (“imediatamente antes”), urgentes.
REFERÊNCIAS:
CESAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2004.