Entrevista com Dejenana Campos. Ativismo feminista e mulheres negras: urgências inadiáveis! – Parte 2
“À deriva. E a flexão de um verbo, ‘derivar’. É a partir dessa imprecisão, ou da conjunção de várias imprecisões, que propomos problematizar os atravessamentos que compõem o ser e o devir. Os modos de ver e de estar no mundo”.
Ariadne Marinho é historiadora, pesquisadora e mãe de Dionísio e Tom. Cuidadora da gata-idosa Cavalo de Fogo e da jovem cachorrinha Frau Caramello. Doutora em História pela UFMT.
***
Entrevista com Dejenana Campos
Ativismo feminista e mulheres negras: urgências inadiáveis!
Parte 2
“eu caminho no sentido de enegrecer e descolonizar meus pensamentos”
Dejenana Campos
Querida Dejenana, explique-nos como é ser mulher ativista do feminismo negro.
Aprendi muito com minhas avós, com minhas tias maternas e paternas, que o afeto e o cuidado são atos revolucionários, e formam uma ação feminista apontando para um mundo melhor. Despertei minha consciência como mulher negra e como tal me reconheço há apenas dez anos. Eu me afirmo[1] como mulher negra. Feminista e negra. Os outros quarenta anos de vida eu me via como “morena”. Não nasci feminista, mas sempre achei que muita coisa estava fora do lugar para diversas mulheres, principalmente para as mulheres negras. Foi essa minha inquietude inicial que me levou para o ativismo social. Só a área contábil era muito pouco para mim, eu precisava fazer algo maior e fui ao encontro das mulheres negras e mulheres periféricas. Queria escutá-las, sem julgamentos, para acolher e apoiá-las. Escutar para agir e agir em prol de um bem-viver para essas mulheres em situação de vulnerabilidade. Assim, por meio de ações concretas, tornei-me uma “escutadeira”: aquela que acolhe, que ouve e apoia. Meu ativismo é sobretudo prático; menos teórico. Aprendendo a sair do individual e ir para o coletivo, pois precisamos umas das outras, da solidariedade e da sororidade[2].
O que me impulsiona, portanto, é a construção coletiva interseccional das mulheres negras. Claro, ser ativista é falar, escrever, pesquisar sobre interseccionalidade, junto com o recorte de gênero, raça e classe. Mas, principalmente, empreender ações práticas. Por isso, é importante vivenciar a realidade das mulheres negras em Mato Grosso e no Brasil. Comparando minhas vivências e experiências com outras mulheres, reconheço meu lugar de privilégio: minha mãe é uma mulher branca, professora; e meu pai, homem negro, foi advogado, político, sempre presente e envolvido no ambiente político-partidário-eleitoral. Reconheço-me enquanto mulher negra que ocupa um espaço de poder como estudante de pós-graduação, professora da rede federal, uma forasteira dentro[3]. Vejo meu lugar de privilégio, mas também de potência[4], em uma sociedade profundamente machista e racista. No entanto, eu caminho no sentido de enegrecer e descolonizar meus pensamentos. E essa é a minha maior motivação, o que me impulsiona a buscar por novos projetos, ampliando minha rede de interação e de intervenção social, de práticas solidárias. Ser política ou ativista, é exercer o direito de participar. Sem dúvida, para mudar o mundo precisamos mudar a vida das mulheres.
O que é o Bolsa Solidária? Em que consiste o projeto efetivamente?
O projeto Bolsa Solidária – quero um mundo melhor, educação menstrual e troca de afetos, nasceu em 09 de março de 2019, com o objetivo de ajudar a resgatar a dignidade e a autoestima de mulheres em situação de vulnerabilidade social. Consistia na distribuição de bolsas seminovas com itens de higiene pessoal. É muito comum que mulheres nessas condições não tenham sequer absorventes, o que é uma realidade muito cruel. Despertamos, assim, uma corrente do bem, o espírito de solidariedade e sororidade das acadêmicas e acadêmicos do curso de Secretariado Executivo do IFMT, campus Cel. Octayde Jorge da Silva, para atender 20 (vinte) mulheres em situação de rua, que transitavam em regiões carentes da região central da capital, nomeadamente no Beco do Candeeiro, no Morro da Luz. Atendemos também as Mulheres Catadoras do Aterro Sanitário de Cuiabá/MT. As responsáveis pelo projeto são minha irmã Dúbia e eu.
Como salientado, o objetivo inicial era combater à pobreza menstrual, denunciando as desigualdades e as violações dos direitos humanos e menstruais; despertar a conscientização sobre a menstruação; cuidar da saúde intima das meninas, mulheres e pessoas que menstruam; propagar a educação menstrual. A menstruação é um processo saudável, normal e vital. Precisamos levar conhecimento da própria corpa/corpo e do ciclo menstrual biológico para o bem-estar e saúde. O projeto, assim, atende meninas, mulheres e pessoas não binárias em idade menstrual; mulheres negras, mulheres quilombolas, mulheres com deficiência, mulheres presidiárias, mulheres em situação de rua. Lembramos que pela legislação vigente quanto ao combate ao prejuízo menstrual, existe a Lei Nacional n. 14.214, de 06 de outubro de 2021, que institui o Programa de Proteção e Promoção de Saúde Menstrual, bem como a Lei Municipal n. 6.712/2021, de autoria da vereadora Edna Sampaio[5] (PT), que promove a “Menstruação sem Tabu”, aprovada em 01.10.2021, para o município de Cuiabá. Lembramos também que o dia 28 de maio é celebrado o Dia Internacional da Saúde da Mulher e da Dignidade Menstrual, com o objetivo de promover a educação menstrual e ampliar as políticas públicas locais e nacionais para a saúde da mulher.
Quais as suas próximas ações? E como podemos colaborar?
A pobreza menstrual é o grande desafio ainda a ser vencido. O acesso aos itens de higiene pessoal deve ser tratado como uma questão de saúde pública, portanto, um direito social. Garantir esse direito é um desafio que exige ações imediatas e contínuas, ir para rua realmente – e não apenas teorizar no espaço acadêmico, em tertúlias com as amigas, nas redes virtuais –, se buscamos uma sociedade com um mínimo de equidade de gênero. Muitas pessoas, muitas mulheres vivem em residências sem banheiro, sem chuveiro, sem rede de esgoto, sem acesso a água, sem saneamento básico, sem produtos de higiene, como absorventes e sabonetes. Essa precariedade afeta o desenvolvimento intelectual, afeta o organismo, afeta a educação, o aspecto emocional, o trabalho e a saúde.
Agora em março de 2023 realizaremos a XV Ação do Projeto Bolsa Solidária – quero um mundo melhor. Atendemos mensalmente uma média de 150 mulheres em situação de vulnerabilidade social, com entrega das doações recebidas de amigas, amigos e entidades solidárias parceiras. As doações recebidas são produtos de higiene pessoal ou ajuda financeira pela chave Pix Solidário (65) 9 9982-2732 e/ou instagram@bolsasolidariadc.
Nosso projeto ainda prevê ações adicionais no futuro. Entre outras, pretendemos substituir gradualmente o uso de tradicionais absorventes higiênicos e, assim, diminuir o ambiental e social do seu descarte. Para tanto, visamos, à médio prazo:
– Implantar e implementar uma fábrica para confecção do absorvente biodegradável (absorvente ecológico- algodão biodegradavel; celulose e fibra de bambu, fibra de resíduos da banana, espuma de soja e outras ações sustentáveis) empregar e gerar renda para as mulheres negras e mulheres em situação de vulnerabilidade social e preservar o meio ambiente, negócio social e sustentável
– Ampliar o acesso a coletores menstruais, calcinhas absorventes (reutilizável); tampão biodegradável, absorventes ecológicos, que é reutilizável;
– Desenvolver política de redução do lixo higiênico, apresentar possíveis soluções de descarte e destino de absorventes descartáveis;
Somos sementeiras! Somos todas Terezas!
Notas
[1]ROSA, Sulamita, reflexão da palavra afirmação, que melhor decide a identidade e a autodefinição da mulher negra, pautada na epistemologia feminista e negra. @rosamefricana https://www.instagram.com/p/ClgZMpuL4eW/ Acesso em: 28 nov.2022.
[2] https://www.politize.com.br/sororidade/. Acesso em: 21 de janeiro 2022.
[3]O termo designa o lugar fronteiriço de mulheres negras em espaços de grupos dominantes. A presença nesses espaços delineia o olhar de nós mulheres negras sobre dinâmicas de poder e opressões interseccionais. Adquirindo um olhar sensível aos fenômenos sociais e cotidianos. Forasteira de dentro é a tradução livre de Outsider Within, termo original mobilizado por Patrícia Hill Collins (2016). Nota da entrevistada.
[4]RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2019; pp. 46.
[5]Vereadora Edna Sampaio é a primeira vereadora negra da capital Cuiabá-MT, em 303 anos de existência (20ª legislatura 01/01/2021 a 31/12/2024). Graduada em Serviço Social pela UFMT (1993); Mestra em Ciência Política pela UFPE (2001) e Doutora em Ciências Sociais pela PUC/SP (2011). Atua como docente da UNEMAT, desde 1994, é Gestora Governamental de MT desde 2002. Coordena o Grupo de pesquisa na UNEMAT, na área Direitos Humanos, Políticas Públicas com enfoque na desigualdade social, racial e educação.