Éramos Mar – Por Vinícius da Silva
Antes de tudo e de todos, éramos Mar. Mais Rio do que humanas. Mais Mar do que Terra. E, como nos contam nossas mais velhas, durante a criação do universo, o sangue dos pombos foi vertido nos lugares que Exu orientou Olofim e, assim, o mundo foi criado. Por isso, no caminho originário, Olofim concedeu a Exu o reconhecimento e lhe disse que, antes de qualquer começo, Exu deve ser louvado. Para que se abram os caminhos, para que se crie o universo, Exu é quem abre o caminho, Exu é quem come primeiro. Exu inventa o seu tempo e causa confusão a quem pensa que sabe de tudo. Exu é o tormento de quem não é Exu.
Ainda assim, éramos Mar. E só depois veio o Verbo. Éramos Trevas, depois veio o Verbo. Éramos uma só, Trevas e Mar, e depois veio o Verbo nos tirar de casa. As histórias que nossas mais velhas nos contam nos leva a esperar por um Mundo onde retornaremos à casa, ao Mar. O Mar é aquilo que não tem tamanho, não pode ser dimensionado por criaturas. As Trevas são aquilo que não têm tamanho, não podem ser determinadas nem pela luz.
Como morcegos, devemos aprender, novamente, a existir sem o Verbo. Aprender a rastrear os sinais pelos sentidos, aprender a ouvir os sussurros para seguir o caminho de Exu. Caminho este que se caminha no escuro, sem saber para onde ir, mas com a certeza de não estar onde estava. Nenhum caminho é tão certo de si que nele não possa haver outros caminhos e encruzilhadas.
Para atravessar as encruzilhadas, é preciso voltar ao Mar e ouvir seus sussurros e segredos. Voltar à Terra e ouvir as histórias das mais velhas. Lembro-me de acordar assustada, com medo, com a sensação de não estar segura dentro de casa. É preciso aprender a ouvir os sinais que a casa nos dá, ouvir os sinais e encontrar esconderijos no interior da Terra. É preciso minar este solo até encontrar o Mar para ouvir seus sussurros. Ouvir desesperadamente como quem busca algum segredo, como quem quer voltar para algum lugar.
Carrego em minha pele o Ofá de Oxóssi. Eu carrego em mim as marcas de um Tempo que anuncia a morte de um pássaro. Tempo este que é espiralar. Eu carrego em mim a tarefa de ser imensa. Contam-nos as mais velhas que, ao matar o pássaro da feiticeira que trouxe fome e miséria ao Mundo, a flecha de Oxóssi consegue afastar a dor e trazer alegria ao Mundo.
Uma vez que os Caminhos estão abertos, que o Ebó está servido a Exu, precisamos estar atentas aos sinais, aos sussurros, nos proteger, e encontrar as rotas de fuga para sermos novamente Mar. Com a sabedoria de que a dor também é matéria, viemos a este Mundo para encontrar o Caminho.
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No laboratório do tempo, coluna assinada por Vinícius da Silva, as coisas não são o que realmente são (ou que pensamos ser); os sonhos deixam de ser sonhos e passam a ser partes da vida. Nesta coluna, quinzenalmente, Vinícius escreverá a partir da interface entre artes visuais, filosofia e literatura, buscando realizar isto que o escritor chama de “experimentos” (ora textos ensaísticos, ora poemas longos) sobre tempo, esquecimento, futuro, e outros experimentos possíveis para o laboratório do tempo. Nesses encontros, Vinícius mais suscitará questões do que tentará respondê-las, pois é dessa forma que o pensamento atinge o seu nível ótimo de curiosidade para conhecer e acessar as coisas. No entanto, o laboratório do tempo nos desafia a esquecer de tudo, menos de quem somos ou de nossos simulacros; você aceita o desafio?
Vinícius da Silva. Graduando em Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas na Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde 2020, da Silva apresenta o Podcast Outro Amanhã, ministra cursos livres sobre o pensamento de bell hooks, Teoria Queer, entre outros temas de pesquisa, e é revisor e atua no setor de Pesquisa Qualitativa da ONG TODXS. Possui experiência e interesse de pesquisa nas seguintes áreas: Filosofia Política, Teoria Queer, Arte Contemporânea, Poéticas Visuais, Teoria Feminista Negra e Artes Plásticas. Site: https://www.viniciuxdasilva.com.br/