Especial “A Arte do Encontro” – Um poema de Alexandra Maia e Francesca Cricelli
O Especial “A Arte do Encontro” reúne poetas para um desafio: o de conceber um poema a quatro mãos, duas cabeças e dois corações.
A proposta foi feita a trinta poetas, quinze duplas. Optamos por não sugerir uma dinâmica, deixando a cargo das duplas inventarem seu método de criação, suas soluções e engendrarem idiossincrasias próprias. Não pensamos nos convites tendo em mente poéticas que dialoguem, mas no desafio da escrita, da composição e até da comunicação.
É possível a poetas tão díspares encontrarem juntas(os) o caminho da criação? Ou será uma parceria leve de estilos e visões que se comunicam?
Em “A Arte do Encontro”, as palavras-chave são criatividade e liberdade. E tudo é absolutamente livre: tema, extensão do poema, processo etc.
O Especial “A Arte do Encontro” faz parte das celebrações do quinto aniversário da Ruído Manifesto. Organização de nossos editores Matheus Guménin Barreto e Wuldson Marcelo.
Neste quinto volume, a reunião entre Alexandra Maia e Francesca Cricelli rende um poema bastante original, batizado de Metamorfose.
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Francesca Cricelli é poeta e tradutora literária. Doutora em Literaturas Estrangeiras e Tradução pela Universidade de São Paulo. Publicou, entre outros, Repátria (Selo Demônio Negro, 2015) e Errância (Macondo Edições e Sagarana Forlag, 2019). Atualmente vive na Islândia.
Alexandra Maia é carioca, poeta e produtora. Lançou em 2019 o livro de poemas Um objeto cortante (Numa Editora, Brasil / Gato Bravo editora, Portugal), que saiu também na Colômbia em 2020 pelo selo Nonada de poesia brasileira, da Ediciones Vestigio. Seu primeiro livro de poemas Coração na Boca foi editado pela 7Letras, em 1999. Publicou também 100 Anos de Poesia – Um Panorama da Poesia Brasileira no Século XX (com Claufe Rodrigues, O Verso Edições, 2000).
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METAMORFOSE
“nunca sinto-me tão viva como assim”
Sunna Dís Másdóttir
COMO ASSIM
TÃO VIVA?
de noite
durmo
por anestesia
para lavar os dias
sabão não basta
a máquina mói bate
torce
atravessar esses tempos
exige mais que força
ser atravessada
é uma questão de tempo
quando tanto
sair pela rua
como se nua
bandeira na mão
e já o coração estrangulado
pela certeza de que corremos
na direção errada
se o precipício nos chama pelo nome
espera por nossos pés
ESPERA POR NOSSOS PÉS
o capacho
nas botas folhas e barro
os resquícios do fim do dia
em casa
faz morada o silêncio
a soma de ausências no ar
extravia-se então o sentido
o avesso a partilha
sob as solas do tempo
a poeira desenha um mapa
há de se imaginar a centelha
num céu noturno sem estrelas
NUM CÉU NOTURNO SEM ESTRELAS
dourar a pílula
ou tirar a fórceps palavras
o peito em buracos
remover à força aquilo que
entranha adentro adere
e morre
dourar a pílula
de um tempo sem viga
quando não se consegue dizer
de uma viagem sem mapa
uma passagem sem rito
num céu noturno sem estrelas
perceber o que morre todos os dias
talvez quem sabe dormir ao relento
o corpo em cinzas sonha
fagulhas faíscas centelhas
que um dia um dia um dia
um dia
enquanto isso escrevo
o avesso
para tanto tentar
dizer que não sei
não sei não sei
o que é
O QUE É
que atravessa o tempo
e vai levando
lavrando o dia
um fio invisível costura
cachoeiras de som e sentido
do imaginado ao dito
um ponto cruz, um arremate
à noite sob a cúpula do silêncio
um coração esgarçado
percebe o que morre todos os dias
fio a fio retece a malha das horas
o que é
que atravessa o peito
fagulha faísca centelha
à noite um novelo de palavras
desprende-se das agulhas
refaz o mapa
atravessa o tempo