Especial “A Arte do Encontro” – Um poema de Lucinda Persona e Marta Helena Cocco
O Especial “A Arte do Encontro” reúne poetas para um desafio: o de conceber um poema a quatro mãos, duas cabeças e dois corações.
A proposta foi feita a trinta poetas, quinze duplas. Optamos por não sugerir uma dinâmica, deixando a cargo das duplas inventarem seu método de criação, suas soluções e engendrarem idiossincrasias próprias. Não pensamos nos convites tendo em mente poéticas que dialoguem, mas no desafio da escrita, da composição e até da comunicação.
É possível a poetas tão díspares encontrarem juntas(os) o caminho da criação? Ou será uma parceria leve de estilos e visões que se comunicam?
Em “A Arte do Encontro”, as palavras-chave são criatividade e liberdade. E tudo é absolutamente livre: tema, extensão do poema, processo etc.
O Especial “A Arte do Encontro” faz parte das celebrações do quinto aniversário da Ruído Manifesto. Organização de nossos editores Matheus Guménin Barreto e Wuldson Marcelo.
Para a estreia do Especial, temos o poema O nascimento de um poema de Lucinda Persona e Marta Helena Cocco.
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Lucinda Persona. Nascida em Arapongas, PR, vive em Cuiabá, MT, desde 1965. Escritora, Poeta, Bióloga (UFMT), Mestre (UFRJ), realizou estágios profissionais na Universidade do Chile. Professora aposentada (UFMT / UNIC). Ocupa a cadeira nº 4 da Academia Mato-grossense de Letras. Com sete livros publicados (poesia), obteve, em três deles, premiação da União Brasileira de Escritores (UBE). Conta com títulos publicados na literatura infantil. Lançou recentemente o livro de crônicas Miragens (Entrelinhas, 2021). Integra antologias e revistas literárias (Poesia Sempre, Lado 7, Revista Brasileira,) e a Coleção Roteiro da poesia brasileira: Anos 90 (Global, 2011).
Marta Helena Cocco. Nasceu em Pinhal Grande – RS em 18/09/1966. Mudou-se para Mato Grosso em 1992. Já morou em Diamantino, Cuiabá e atualmente reside em Tangará da Serra. Atuou em várias instituições educacionais públicas e privadas do estado. É professora de Literatura da UNEMAT, atuando na graduação (câmpus de Tangará da Serra) e pós-graduação (Câmpus de Sinop), e escritora. Publicou 16 livros e recebeu quatro prêmios literários, além de uma seleção de um dos livros, em âmbito nacional, pelo MEC, em 2018. Ocupa a cadeira nº 18 na Academia Mato-Grossense de Letras e integra o grupo de pesquisa LER (Unemat/CNPq).
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O NASCIMENTO DE UM POEMA
I
Um dia após o outro, essa busca incerta, essa tarefa.
Lavradora que sou, cavando fossos no tempo
como quem planta quimeras em retângulos de papel.
Por essa realidade de laços tão complexos
repenso outros caminhos, espero novas semeaduras.
Grande arte é saber conversar com as coisas
ou por caminhos diversos destravar a língua.
Hoje, como numa tarde de perigo, vejo o ar petrificado da cidade
debaixo da massa sombria de nuvens. As nuvens levadas pelo vento vivo.
As palavras todas, quase às escuras. Sem elas não se pode fazer muito.
Relâmpagos iluminam o instante
um deles corta-me a estrofe
versos inteiros desaparecem da face da terra.
Não me dou por perdida e prossigo na faina.
Entre réstias de esperança e limites de arame
entrego à terra as sementes.
O dia, empalidecido pela morte, ainda está no jardim
agarrado ao tronco da palmeira.
Não enxergo sequer a garupa do poente.
Daqui a pouco, as patas negras da noite
darão os primeiros passos.
Impossível tomar as rédeas do tempo.
A vida é uma renda de esperas:
II
E de esperas
(é minha vez de dizer com a boca cheia de júbilo)
um ventre dá ao tempo a sua luz.
Pouco antes da troca de turno,
nuvens rolaram e lamberam o chão.
Nas casas, embora as batidas e obséquios de pouso,
portas seguiam seu curso de sono e indiferença
enquanto árvores estendiam-se às estrelas
contra a noite e suas patas.
Mas, quando a hora é chegada,
nada detém o acontecimento.
Mal a bolsa da madrugada rompeu,
o broto encontrou o caminho
e o que era réstia expandiu-se clarão.
Nasceu
fora dos jardins, no meio da rua, rodeado
de companhias foscas: garrafas vazias, cães abandonados,
palavras aflitas (aquelas, irmã, que pensavas perdidas)
à margem dos banquetes, fora do circuito das moedas.
Nasceu
da faina e esperas no tráfego de muitas luas
o poema esperado.
De modo que lavrássemos
seu jeito nada inusitado de aprender a respirar
e de vir para não ser servido: um deus na manjedoura.
Nasceu. E nascido pode recompor um mundo
(ainda que infinitesimal no campo arável das estrelas)
onde um seio de mãe, não importa se vazio de leite,
seja colo de ninar – com perdão e esperanças –
a língua áspera da morte.
Eis o poema no meio de nós.