Especial Arcada: Um conto de “Cortiço Capivara” de Júlio Custódio
Tá tudo interligado no Cortiço Capivara!
Arcada não é um selo, nem editora. É um grupo de escritores criado em 2018 por Danilo Fochesatto, Lorenzo Falcão, Júlio Custódio e Rodrigo Meloni. Em 2021, aderiu ao Arcada Santiago Santos. O quinteto aceita a nominação de autopublicadores, realizando suas produções em conjunto. Todos leem os livros de todos e dão sugestões aqui, ali e acolá.
O processo gráfico, o marketing do lançamento e a distribuição também são decisões compartilhadas; e as obras são lançadas em conjunto, o que procede numa “coleção”. A primeira teve lançamento em 2019 e a segunda em 2023.
Os livros do Arcada possuem ainda certa conexão temática, alguns personagens e histórias reaparecem em mais de um livro, criando aos poucos um universo compartilhado em uma Cuiabá mágica e brutal, o Cuiaverso. Tais conexões são também fundamentais no livro Cortiço Capivara, onde “cada conto pode ser lido de maneira isolada, mas o livro vira um romance caso os contos sejam lidos na ordem apresentada”, diz o autor, Júlio Custódio. Vale notar ainda que o Cortiço Capivara é o primeiro volume da Trilogia Capivara.
Você pode conhecer mais sobre os livros do Arcada no https://leiaarcada.com.br e no perfil do Instagram, @leiaarcada. Os livros são vendidos oficialmente pela Shopee (https://bit.ly/leiaarcada) e Estante Virtual (https://bit.ly/leiaarcadaestante) para todo o Brasil. E fisicamente nos sebos Tchá por Discos em Cuiabá e Rua Antiga em Chapada dos Guimarães.
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Júlio Custódio, mineiro de 1983, migrou ainda jovem para Cuiabá, onde trabalhou com música, computador e filosofia. Lançou pelo Arcada em 2018 o primeiro livro de poesias, Você Derrubou Coisas Pelo Caminho, e, em 2023, o Cortiço Capivara, sua inauguração no mundo dos contos (e, quiçá, no mundo dos romances).
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Um conto de Cortiço Capivara de Júlio Custódio
Um Borba!
Nosso herói, autoproclamado o maior filósofo entre os Borbas, achou a solução: uma piada sobre o voo das árvores. Ele nunca entendeu o humor. A alegria não o atraía tanto quanto a verdade, mas agora conectara ambas via raciocínio. Além de filósofo, Borba também trabalhava e tinha uma entrega a fazer na madrugada. Saltou da rede.
O perigo crescia no ramo de entregas e atrasar não era aconselhável. Borba ainda precisava trocar as vestimentas, o calor da noite as encharcara. Ao ficar pelado, sua imagem no espelho o humilhou e a piada voltou à mente do filósofo. Esqueceu outra vez do perigo no atraso, e questionou o espelho.
— Por nunca querer voar, teria a árvore mais liberdade que a ave?
A resposta reafirmou-se em sua consciência e Borba abriu um sorriso, pois encontrara, de fato, a cura. A mágoa vinha adoecendo a polis feito feitiçaria e ele possuía agora o despacho. Somente a chacota mais chocante — a anedota aniquiladora, o gracejo Gorgoroth — seria capaz de salvar esse povo magoado da… Borba arregalou os olhos.
Havia ainda a entrega. Havia o perigo no atraso.
Enfiou-se nas roupas secas, projetou as coordenadas e saiu da quitinete abotoando a camisa. Foi a passos largos para o portão do condomínio. Talvez o melhor fosse viver longe de aventuras, sem heroísmo. Melhor fosse ficar no emprego mecanizado de entregador e deixar os pensamentos trabalhando ao fundo para depois espalhá-los em livros maravilhosos. A polis que lesse e se salvasse por si. Borba era um ser teórico, um filósofo. Seu papel era indicar a solução e não precisamente solucionar. Encontrava-se já abstraído em axiomas quando o pragmatismo do portão fechado o trouxe de volta.
Uma voz veio por trás.
— Borba, grande Borba — disse o síndico. — Se você fosse o Jorge eu teria dito: Jorge, grande Jorge!
Borba precisou de estoicismo ali. Acalmou-se e pôs a mão no ombro do síndico.
— O humor mede a civilização — disse o filósofo —, e o senhor é a barbárie. — A civilização começa ao pagar o aluguel. É o mínimo. — Eu já te dei duas caixas do meu livro.
— Duas caixas de plágios e insultos. Fui vender pra mulher da banca e ela me cobrou pra jogar fora.
— O próximo vai ser ainda melhor, vai ter uma piada…
— Borba, já deu. Ou acerta essa semana ou cai fora. Conselho de amigo, você não é engraçado, pelo contrário…
— Pedestres! Meu subtexto é atonal. — Borba meteu um murro no queixo do síndico, que apagou de imediato.
É uma verdade reconhecida universalmente, alguém em posse de boa fortuna intelectual volta e meia escapa cópia. Não veio daí o golpe. A violência nunca fez parte da vida do Borba e, apesar de ser terça-feira, do céu ter borrado a cor, o motivo do murro foi a falta de humor acusada. Ainda pior pela mágoa ameaçando a polis. Eis a chance de os intelectuais virarem heróis. A liberdade da árvore de não querer voar era a piada mais profunda, a troça mais tremenda, o arrebatamento… Borba arregalou os olhos.
Havia ainda a entrega. Havia o perigo no atraso.
Ele abriu o portão e saiu correndo. Precisava esquecer o heroísmo, ao menos por ora. O calor não era menor na rua, o filósofo correu por vários quarteirões até parar e puxar o ar. Um velho dormia na esquina dentro de um caixote de papelão. Borba conferiu a coordenada e aproximou-se.
— Ei, trouxe a trouxa.
— Ora, vejam — o velho disse, sentou e sorriu.
— A maritaca ri da liberdade da árvore de não querer Borba travou.
Como alguém sabia da piada? De fato, não era igualzinha, o velho havia metido uma maritaca, mas maritaca é ave, não? Um azedume emanou do velho e só então um detalhe chamou a atenção do filósofo. Ou melhor, a falta do detalhe. Tremeu-se todo.
Não havia no caixote de papelão a famosa insígnia do Cortiço Capivara. O velho também tinha um aroma azedo, e não cítrico. Borba estava atrasado, errara a entrega. Néscia mancada. Precisava sair rápido dali. Maldito síndico, maldito heroísmo, maldita piada… Ele correu demais de nervoso. Sua mente mergulhou em códigos e coordenadas; a lei era código de guerra, o sorriso uma coordenada do sim, o pânico um código de alerta, a repetição da ausência uma coordenada do fim, até a maçã era um pequi em códigos, pois às vezes o filósofo equivocava-se. Errara até a entrega.
Ele tomou um puxão e caiu no asfalto.
O velho do caixote olhou ao redor e roubou pedras de um jardim.
— Estúpidos atenienses — disse Borba, na madrugada quente de Cuiabá. — Não cometam outro crime contra a filosofia. Eu sou um Borba. Um Borba!
Borba perdeu as forças com a pedrada na cabeça. Veio outra e ele desabou. Sorriu ao ver o cérebro escorrer pelo asfalto, a espalhar enfim seus pensamentos pela cidade.