estratégias para cavalgar a solidão – poema de eduardo valmobida
eduardo valmobida respira desde o fim de janeiro de 1995. como o fazem os anfíbios, cresceu numa várzea, peculiarmente, paulista. era sábado. chovia. eventualmente, tornou-se um leitor devoto de literaturas e filosofias indianas, susto da sua vida de ex-estudante de Virginia Woolf, de quem pesquisou a representação das personagens suicidas pela USP. antes de se formar, antes antes da pandemia de covid-19, antes ainda do intercâmbio na Eötvös Loránd University, de Budapeste, passou pela Índia e realizou sonho nº2 da sua lista infinita: viu a 2ª maior estátua de Shiva do mundo, em Karnataka. meditou muito. gostou. a publicação de princípio (Urutau, 2022), realizou sonho nº1. continuou a sonhar com sede (Laranja Original, no prelo). diz meditar sempre, a verdade é que apenas contempla de olhos fechados.
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estratégias para cavalgar a solidão
—falar com deus:
vem.
vem: segunda pessoa singular do imperativo de “vir”; terceira pessoa singular do presente do indicativo de “vir”. movimento. proposição. convite.
sobretudo, reconhecimento de alteridade porque fala para ou do outro. quem quer que seja.
reconhecer não estar sozinho.
é possível começar assim:
não tenho medo de te ver. mesmo sem um vislumbre da cor dos teus olhos ou da tua sombra notícia, hoje o eco da tua voz me bastaria.
vem. vem.
como te açular à palavra? como te seduzir ao leito da minha mente? como te trazer de volta à vida em mim? o que teria eu a provocar ofertar oferecer prometer jurar rezar recitar teus mantras teus nomes teus segredos qual incenso qual vela qual lágrima te chamaria a atenção te agradaria te faria clamar por mim e por ti marcar presença nos meus salões de silêncio penetrar meu corpo mente cosmo esse inominável que, porque não me resta alternativa, chamo sede.
nomearia perdição ou farsa se no resquício da minha memória atômica tu não tivesses habitado a vastidão da minha pele através dos séculos e, talvez por amor, tivesses te entediado de mim ou de ti e fostes viver em outros mares de morros, caso em que o que poderia dar-te eu que não um corpo similar ao meu diferente do meu com nome esqueleto e vestes em extática dança, meditação abissal ou luz. muita luz. mais dia claro que o sol a pino e imerso no útero da escuridão de si.
senão com palavra e boca, como dar voz a ti?
o que posso, ofereço
meu corpo cru
carregado da memória
do afago de outro
de sede e suor
minha língua encrustada
do sebo branco da ladainha.
da minha boca fétida esse amargor,
muco primevo. não o doce gozo.
de mim, um vazio menos amedrontado.
porque coube na minha face uma boca, ainda que eventualmente lhe arrancassem dentes, era o úmido móvel dançante quente da língua que produzia sons e roubava do mundo um eco era a sede e o ardor das dunas atravessava o pó da pedra que se fez areia primordial em mim e me açoitou em tempestades de copo d’água e à minha existência devastou, no mundo me fez do pó à lama e do corpo da mãe de vestes anil me roubou e me trouxe aqui
a este ponto
além do qual só se conhece a solidão
sem nenhum consentimento.
e tendo aprendido a feitiçaria dos signos linguísticos, da retórica do kāmasūtra ah
seria tão fácil te trazer a mim,
te dizer: vem
vem
e te espero sentado em lótus pernas cruzadas braços abertos ninguém diria ereto talvez um pouco corcunda um pouco desconfortável
ninguém diria calmo
mas espero pacientemente
até que venhas espocar teus lábios nas minhas palavras. até que abras teus olhos enterrados em meditação, lentamente se esquecendo das tuas falhas e anseios criando, por tua própria diversão, outras matizes da existência, mais do teu līlā. vem.
vem.
e se não eu a te chamar, qual seria o teu lugar no mundo? se não são mais necessárias catedrais ou templos se o santo foi calado se te entronaram no pico de uma montanha e disseram que escalar seria um pecado se ao divino o acesso se tornou um livro um punhado de sal uma pergunta se na cantiga e no escarro teu nome toma forma na herança do escapulário japamālā sol e fogo e chuva se na roda e na mente rasuraram teus símbolos, e na pedra da loucura enfim entalharam teu nome, a deixaram erodir pelo silêncio.
se agora ouves o chamado, é de um eu
que só pode te dar amplos vazios para habitar
e calar-se o suficiente para que tu digas:::
enfim, ansiando por ti, entrego-me ao ar,
como a um mantra,
entoo uma promessa esperança
convido:
vem
e deixo vir; como à musa
ao gozo
à morte
ou a um sussurro ínfimo do amor.
*
—e na hora do desespero
atentar-se sempre ao fôlego.
porque é a única coisa que lhe é garantida agora que não tens mais os objetos do teu quotidiano a te agarrar a indicarem pistas um caminho para achegar-te a ti. tuas vestes te foram tiradas teu leito esfriou sentirás saudades eternas da cadela que te fez menos só e a tudo que foi abandonado tu não tens mais apego por perdão apenas um leve amargor na ponta da língua quando é necessário relatar essa história ou quaisquer dos demais momentos de crise em que tu disseste: fim,
mas não foi.
claramente estás aqui tens corpo levemente flácido de cansado ressecado de sol estás aqui tens sede e frio se adentra o corpo pelos poros osmótico e sob a ótica do teu desespero não poderias outra coisa que não te sentar em silêncio agarrar-te à corrente da respiração e se deixar ser levado navegar o fluxo abrir as velas não fazer esforço não brigar preservar suas energias para o momento do enfrentamento deixar que te trespasse perfure decapite porque não é a crise em si que te destruirá.
atenta-te ao fluir do fôlego
tua única realidade imutável.
*
—a elaborar esta ausência
abro espaço entre a porta do meu quarto e o lençol que recobre meu corpo
faço um convite como quem chama o amante para abater o prazer
como se além da pureza do momento
em que penetra o som ao ouvido
a pele à pele
fosse possível explodir
uma verdade mentira promessa
e no fogo do fôlego se filtrasse apenas
o som do violão soçobrando o sussurro do ardor
e do mais misterioso do corpo o arrepio
fosse prenúncio e confissão
pureza e pó
porque não haveria nada além do mais etéreo do sangue a perpetrar com a morte o sacrifício daquilo que é sacrossanto ou uninuclear
haveria na história algo mais comum que uma transgressão?
pois que aqui no leito da sombra na tintura da palavra no branco do papel se crava a humildade de quem escreve e de quem lê como o pacto mais demoníaco de todos em que não é possível fechar o livro sem conceber uma letra sequer sem se atentar à textura do papel ou à presença do texto ali, aqui, e a ousadia tolice pecado de matar
uma árvore
o bom-senso
uma paixão
e dizer “isto é literatura” dizer “alguém pensou” “gaste teu tempo com isso” que é apenas um deixar lentamente de ser a si uma psicanálise da presença um expurgo que tão logo ganha forma perde potência tão cedo se contrai entre o som e a grafia deixa de ser verdade realidade como um segredo que, ao ser partilhado, já não é mais segredo, mas uma cumplicidade no pecado de saber, partilhar a maçã e a danação.
e no mais secreto de si se sabe que não há amor nem amar apenas um desejo intenso e inapagável de não estar só de não ser incompreensível de que alguém possa dizer sim é isso te quero te desejo tu me completas ainda que ao ouvir isso tu estranhes sub-reptícia amorosamente não seres tu a frase incompleta mas te reduzirem a um ponto-final ou uma vírgula —o que seria melhor, convenhamos, por prometer continuidade—, mas
amado
tu és apenas uma vírgula extra que decido colocar no livro da minha vida e quando deus decidir finalmente lê-lo dirá “faltou bom-senso ou revisão”.