Eterno Retorno Negro – Por Sílvia Barros
TRAVESSIA é coluna reservada a poeta de mão cheia, Sílvia Barros. A periodicidade é quinzenal, preferencialmente às terças-feiras, mas isso não é regra, só os 15 dias. O objetivo do espaço é jogar luz sobre as intercessões presentes na relação entre conhecimento acadêmico e saber ancestral. Boa leitura!
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A história do povo negro no Brasil é marcada por esquecimentos. São diversas as formas de apagamentos, desde aquelas perpetradas contra a população escravizada para o rompimento de laços com suas raízes até a ocultação proposital de conhecimentos e tecnologias criados por pessoas negras.
No dia 1º de fevereiro de 1935, nascia, em Minas Gerais, a grande intelectual brasileira Lélia Gonzalez. É a memória dela que me provoca essa reflexão.
Recentemente, a obra de Lélia foi publicada em livro e sua memória tem sido resgatada principalmente depois que Angela Davis disse, em conferência proferida no Brasil, que aprendeu muito com Lélia. É sintomático que retomemos a obra de Lélia após uma provocação da tão celebrada feminista estunidense. Nesse sentido, a própria Lélia Gonzalez oferece as ferramentas para que reflitamos sobre o assunto.
O pensamento de Lélia Gonzalez é extremamente atual, pois evidencia a experiência negra brasileira como um processo de eterno recomeço, de eterna luta por direitos e avanços. Ela nos mostra que nada é garantido, estamos sempre por um fio. A substituição do pensamento negro brasileiro pelo estadunidense mostra isso. Desejamos as traduções da obra de Angela Davis e bell hooks (obras importantíssimas de fato) e deixamos de nos aprofundar no pensamento de Lélia Gonzalez que já discutia a importância da análise social a partir dos cruzamentos de gênero, raça e classe (o que depois passou a ser chamado de interseccionalidade por Kimberlé Crenshaw), além de denunciar a representação violenta de mulheres negras por meio dos estereótipos da mulata e da doméstica (o que Patrícia Hill Collins chamaria de imagens de controle).
Além disso, no Brasil, existe grande dificuldade de estudar a obra de intelectuais de gerações anteriores e de valorizar seu legado. Quando surge uma intelectual negra ou um artista negro que consegue furar o bloqueio e atingir a população que se educa principalmente pela televisão e pelas redes sociais, damos a essa pessoa o posto do pioneirismo. Obviamente, devemos atribuir a devida importância a essa pessoa, é inegável o esforço que se precisa fazer para ser ouvida e lida sendo uma pessoa negra. A questão é que fica sempre a impressão de estarmos diante do ponto zero do pensamento e da luta negra.
No ensaio “Cultura, etnicidade e trabalho”, parte do livro Por um feminismo afro latino americano (2020), que reúne os escritos de Lélia Gonzalez, ela nos lembra:
Cabe recordar aqui que o lema do abolicionismo era que “negro pode ser doutor”. De 1888 para cá o que se observou foi o desaparecimento dos doutores negros que, na fase anterior, já vinham participando do processo político nacional. Que mecanismos foram utilizados pelas classes dominantes a ponto de neutralizarem a participação negra na sociedade brasileira? (p. 42).
Essa é uma discussão chave para entender a nossa história e nosso percurso político e intelectual marcado por barreiras e retrocessos. Marcado pela necessidade de dizer e fazer novamente o que já foi dito e feito antes, porque há sempre diferentes mecanismos de neutralização da presença negra nas diversas áreas da sociedade brasileira. O negro que poderia ser doutor, de acordo com o lema abolicionista, hoje precisa convencer a sociedade de que políticas afirmativas, como cotas raciais em universidades públicas, ainda são essenciais para uma – imaginada – equidade racial.
Retornando ao pensamento de Lélia, é dessa forma que ela define o movimento negro:
Quando falamos sobre o movimento negro, estamos nos referindo a um complexo de organizações e instituições herdeiras de um longo processo histórico de resistência pan-africanista e de luta por libertação da comunidade afro-brasileira, sujeita a condições extremas de exploração econômica e opressão racial. E, devido ao fato de enfrentarem o racismo e suas práticas, elas levam às últimas consequências o processo de desmascarar a lógica da dominação capitalista. Por esse motivo, o movimento negro tem um potencial revolucionário muito mais rico do que outros movimentos semelhantes. (2020, p. 71)
A atuação do movimento negro é histórica e contínua, não pode ser substituída por discursos como o da representatividade, que, embora seja importante, é lançado para a perspectiva individual. Essa proposta individualista faz parte do jogo da dominação, que perpetua a narrativa do negro único ou do primeiro negro. Por quanto tempo ainda teremos de ouvir a história da primeira mulher negra a ocupar determinado lugar (na política, na arte, na ciência, no esporte)? Essas histórias fazem parte dos mecanismos dominantes para criar emoção e empatia a partir de uma experiência que deveria redimir todo o coletivo, calando assim os gritos de revolta.
Que a obra de Lélia Gonzalez seja uma ferramenta contra esses mecanismos. Precisamos tomar a herança que nos pertence, abrir esse baú de tesouros acumulados desde o século XVI e lançar mão das ideias e das estratégias que nos trouxeram até aqui.
cleildes Santana
Olá Silvia.
Parabéns pela tua escrita. Olha , muitos pontos merecem questionamentos desta última escrita ( a questão do esquecimento/ apagamento; as MANAs estrelas da web; o papel do mov negro, etc ) , entretanto é importante se quisermos avançar pensar sobre os mecanismos dominantes e sua construção e reprodução por parte de nosso povo. Refletir sobre este processo de subordinação e servidão para ” ser aceito entre os ” pares “. É triste , podre e cadaverico . Bjao. Sorte viu !
Sílvia Barros
Sim, cleildes, tem razão. obrigada!