Nove poemas de Fernando Maia Mota
Fernando Maia da Motta é professor, poeta e compositor. Graduado em História e Mestre em História Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro –RJ. Declamou seu primeiro poema para amigos e grupos de poetas e assim continua desde os anos 90. Atualmente, se envereda pelos caminhos da composição de sambas populares tendo registrado seus primeiros sambas. Hoje entende que a linha melódica da música popular é uma passarela para o desfile da sua poesia.
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Estilhaçado
Estou num pedaço meu
e são tantos os eus por aí..
Dentro desses pedaços
encontram-se a soma exata
de cada pedaço
O mesmo eu
E s ti l
ha
ç
a d
o .
*
Fuga
A noite me cobre
e me beija.
E os poemas fogem
com meus sonhos
Os poemas aventuram-se
na madrugada das coisas.
E me esquecem dormindo
Do lado de fora
Do sonho.
*
Insone
Tanta madrugada habita meu dedo
Que expurgo vírgulas tão compridas
Quanto bocejos.
A noite que eu roubo do mundo
Equivale a sorrisos que me roubam de flores.
Ah! Às vezes sou um grito de trevas
A abarrotar as ruas de matéria escura
E de coisas escondidas.
Às vezes um telhado a olhar estrelas sem estrelas
Outras vezes apenas o lado escuro
Que me apodrece.
Às vezes as noites me nascem
Outras, me esquecem.
E Tantas as noites que acordo o dia…
Que às vezes nunca amanhece.
*
Morte industrial
Não apontes a meu corpo
O dedo indicador da morte.
Pois a eternidade de adubo estranho à terra
É a única certeza que me existe.
Não apresse o passo ligeiro da vida,
Já que a morte caminha de dentro para fora,
Pelas rugas curvas de sua estrada de carne
Iluminada pelo poste do espírito que contempla inerte
Sem sequer existir.
Não, não me puxe pelo braço com a pressa industrial,
Deixe que eu tente Ser enquanto a morte
Empacota-me como um produto
No triste balcão de um cemitério sem varanda.
Deixe meu corpo aproveitar a terra seca, rachada
Meus pés amansarem formigueiros
E pisarem brasas.
Deixe que eu sinta maravilhosamente a dor,
Que é a sirene da vida que ainda apita-me.
Não apresse a linha da vida a rolar suas esteiras,
Não me tape com um lençol como numa embalagem,
Nem me beije como quem vê adormecer um menino
Na velha e desconfortável prateleira da morte.
Não quero estar exposto num cemitério
Enquanto adubo com indústria o corpo da terra
Esfarelado em carne, ossos e saudades,
Processados pela longa fábrica da vida inteira.
*
O poeta de açúcar
À João Cabral de Mello Neto
Debaixo da macega
Cana adentro,
O poeta dorme para fora.
E no nó do caniço engorda
uma vontade imensa de explodir-se
doce.
*
O último vagão
Já é tarde e o ultimo vagão
Sempre mastiga meu sonho,
Que é sempre o último a sonhar,
Um sonho de fim-de-fila.
Já esta na hora, o embarque
Sempre me rasga ao meio.
E vivo no pedaço que fica,
Feito pólen na abelha.
De dentro desse trem apertado
como um coração triste,
Aceno para ninguém,
Que me acena de volta.
O trem partiu alguém partiu
Alguém me partiu
Mas desta vez eu fiquei inteiro na estação,
Desta vez o ultimo vagão
Ficou apenas comigo,
E não com meus sonhos.
*
Valsa das pálpebras
À minha cama de trégua e alívio
Uma mulher põe as mãos em meus sonhos,
Valsa sonâmbula no interior da noite
A pisotear meus pensamentos…
Essa mulher e esses sonhos
Valsam até vazar a alma
Sapateiam e arrebatam-se
Feito uma ciranda de anti-coisas,
…E essa mulher agora dorme
Abraçada em meus sonhos
Enquanto serpenteio a insônia
E castigo a antiestética das Pálpebras.
*
Poemática
As coisas se inflam no poema.
E os amores dão frutos maduros,
Enquanto a perfeição mastiga as deusas,
Borboletas e ninfas.
No poema,
As mães dão a luz ao mundo
E se debruçam no peitoril da lua.
Feito uma República Romântica
A aleitar seus fantasmas e bustos de praças.
…E até as desgraças cospem nos versos dos hospitais
Matéria-prima de túmulos e lágrimas…
As árvores escritas são mais árvores
Pois as que existem morrem e são mortas
Visto que o poema dá a imortalidade
De um suspiro à matéria toda.
(…)
Toda a existência se enche em um poema
Como se o fosse, não a carne,
mas a alma que abarrota o corpo,
O sopro nas narinas de um Adão,
reinventado a verso.
*
Silêncio para regurgitar
O poeta é a solidão de si mesmo, um estado…
Um clímax sinestésico de remissão
O poeta é prenhe de sentidos
Quando apanhado pelo vazio de fora
O silêncio que preenche os espaços
Feito um abraço
É o mesmo que abre as cortinas
Para o precipício próprio
As paredes, camas e toda existência é a personificação
Das carcaças de letras escondidas por debaixo de tudo
E não há razão que sustente a presteza
Dos sentidos, ao atravessarem o silêncio
Das coisas sós
O poeta silencia por fora
E discursa pros sonhos
Como quem ora.