Garimpando o YouTube em busca de curtas-metragens de animação – Por Wuldson Marcelo
Vestígio é uma palavra de origem latina, do termo vestigium, que significa “pegada, marca deixada no chão”, ainda, pode ser passagem ou a ocorrência de algum fato/coisa, assim como indício ou o que remanesce de algo. Neste sentido, vestígio convoca à investigação, à pesquisa. De um sinal, de um rastro, de uma descoberta, um ponto vira um conjunto, compõe-se uma trama, um espectro de produções. O nosso editor Wuldson Marcelo busca com a coluna Vestígio fazer do encontro com uma obra uma devassa pelo mundo do audiovisual, desde os canais de TVs por assinatura aos serviços de streaming, das plataformas digitais de distribuição de vídeo gratuitas ou pagas às telas de cinema, seja com filmes clássicos, seja com filmes contemporâneos. Em foco, cinematografias não tão acessíveis ou populares, películas antigas, séries, minisséries, webséries, documentários, animações e curtas-metragens, com o intuito de selecionar produções audiovisuais que revelem o talento e a força de suas realizadoras/realizadores, assim como possam promover o conhecimento de histórias, culturas e fazeres fílmicos.
Curtas-metragens de animação podem ser uma ótima forma de apresentar o universo audiovisual para as crianças. Sendo produções que lidam com lições de vida e metáforas significativas, essas obras geram aprendizado ao colocar em debates temas essenciais ao desenvolvimento humano, como família, bondade, autoaceitação, respeito ao meio ambiente etc.
Porém, não só dos infantes se ocupam as(os) realizadoras(es) de animação. Há uma vasta produção, dos mais diversos assuntos, voltada para adultos, tratando desde relações humanas ao mundo do trabalho, passando pelo consumismo até as desilusões amorosas.
No YouTube, há uma quantidade considerável de curtas-metragens que merecem ser conhecidos e devorados pelos amantes da sétima arte. Alguns deles são multipremiados, já outros suscitam excelentes debates sobre o mundo que criamos, vivemos e lutamos para melhorar.
A seguir, dez curtas-metragens de animação que podem ser encontrados no YouTube.
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1. O Emprego (Argentina, 2008, 6 minutos).
Dirigido por Santiago Bou Grasso, a partir do roteiro de Patricio Gabriel Plaza, a animação O Emprego é uma crítica contundente e (extremamente) melancólica sobre a coisificação do trabalho humano no sistema capitalista, logo da objetificação do trabalhador.
Nos seis minutos de duração do curta-metragem, acompanhamos um homem comum, que acorda, escova os dentes, toma o café da manhã, enfim, faz as preparações rotineiras antes de partir para o trabalho. Tudo é monótono e esse sujeito aparenta ser nada de especial. Nesse ínterim, é revelado que cada objeto, coisa, móvel é uma pessoa, em uma incisiva demonstração de como a automatização e a exploração do trabalho ferem a dignidade humana.
Não há um sentido coletivo, cada qual ocupa um papel desestimulador e alienante no espaço social. Como não há diálogo, e com o reforço da falta de expressão do protagonista e demais trabalhadores, a animação nos entrega um mundo concebido pela falta de percepção do outro, então de um senso comunitário inexistente, em que a relação econômica pauta os vínculos ou a falta deles.
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2. Caminho dos Gigantes (Brasil, 2016, 12 minutos).
Com direção e roteiro de Alois Di Leo, essa animação de São Paulo trata de questões como destino, natureza e vida. Acompanhando a pequena indígena Oquirá, de seis anos, em sua aventura numa floresta de árvores de tamanho colossal, o curta-metragem se inicia com um ato de resistência da menina diante de um gesto que significa aprendizado e comunhão para a tribo. Por que devemos seguir os ciclos? A fuga de Oquirá é um reforço dessa resistência, assim como modus operandi de um amadurecimento necessário.
Longe de seu habitat, mas próxima o suficiente para compreender as lições sobre a relação com a terra, costumes, sabedoria dos mais experientes e pertencimento à uma comunidade, a indígena se conhece como um indivíduo, mas também como parte de algo maior, de um conjunto, de um coletivo, de um vínculo com o seu povo e com a natureza.
Os gigantes do título são os mais velhos que ensinam sobre o ciclo da vida e o valor dos laços afetivos comunitários.
A trilha sonora do peruano Tito La Rosa e as imagens poéticas em 2D contribuem sobremaneira para a transmissão das mensagens do curta-metragem.
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3. Skhizein (França, 2008, 13 minutos)
Premiado em Cannes, no Festival de Chicago, no Festival de Los Angeles e no Annecy, o curta-metragem de Jérémy Clapin, que é autor do roteiro em parceira com Stéphane Piera, apresenta Henry Debrus, um homem que passa a ter uma condição inusitada após ser atingido por um meteorito: ele é forçado a viver 91 centímetros distante do próprio corpo. Experiência que traz incompreensão, tristeza e revolta. Sentimentos que a adaptação – algo que Henry deve se submeter, já que não tem escolha – e a terapia não aplacam.
O trabalho e a forma como Henry evita que notem o seu “problema” (tentativas que acentuam a percepção de vazio existencial e do quanto é invisível) tornam o seu sofrimento pela situação cada vez mais evidente, e Clapin consegue transmitir o desespero do protagonista com algum humor, mas que é atravessado pela melancolia, que dá o tom da animação.
Skhizein é a história de um homem comum que enfrenta uma ocorrência fora do normal, cuja circunstâncias bizarras levam a angústia gradativa, com Henry “perseguindo” o meteoro para tentar reverter o seu estado.
O roteiro criativo da dupla Clapin e Piera é o trunfo do curta-metragem, já que os autores encontram um modo criativo, emocionante e simbólico para tratar da sensação de deslocamento social, de não pertencimento.
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4. A Vida da Morte (Holanda, 2012, 5 minutos)
O curta-metragem é o TCC da animadora holandesa Marsha Onderstijn para a St. Joost Kunstacademie. Em uma floresta, a Morte segue sua rotina, cumprindo sua função de modo pacífico. Onderstijn torna o gesto, o leve toque da morte, algo natural e terno. Essa harmonia entre a Morte e sua atribuição sofre uma interferência quando ela se depara com um cervo. Cativada, a Morte não consegue executar a sua tarefa e passa a acompanhar o animal, com quem desenvolve um forte vínculo.
A Morte se apaixona pela Vida e sabe que o mínimo toque significa destruir a beleza que encontrara. Já o cervo aceita a companhia e o amor daquela responsável pela sua extinção ao mesmo tempo em que sabe que sua existência está chegando ao fim. O ciclo natural da vida é o passamento.
Feito à mão, quadro por quadro, A Vida da Morte lança um olhar sensível sobre o ato de morrer, tornando o falecimento não algo terrível, mas parte do processo que chamamos de vida. A animação é bem-sucedida em seu propósito de nos fazer refletir sobre o nosso espanto e temor diante da morte, que é inevitável, ainda que a humanidade insista em encará-la como adversária.
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5. Tamara (Estados Unidos, 2013, 5 minutos)
Essa pequena animação é um trabalho de 22 artistas, que com a direção de Craig Kitzmann e Jason Marino (que assina o roteiro) revela-se uma tocante história de amor à arte, no caso à dança, e da relação mãe-filha.
Tamara é uma criança que sonha em ser bailarina. E essa menina dedicada e talentosa tem um obstáculo a superar: ela é surda. No entanto, para Tamara e sua mãe, esse não é um projeto de vida impossível.
O curta-metragem é delicado e mostra como uma adversidade não é empecilho a aspiração por um futuro naquilo que nos impulsiona.
A música para, mas Tamara continua seus movimentos, com a mãe a observá-la, primeiro com desânimo e depois com admiração, mudança provocada pelo entusiasmo da menina, que mostra que não está limitada pelas barreiras impostas pela sociedade.
A animação é tocante e eficiente por transmitir sentimentos em tão pouco tempo – com apenas uma frase em língua oral e comunicação em língua de sinais –, como o de perseguir nossos sonhos e o amor materno.
Tamara é uma história de amor, mas também de potencialidades e empoderamento.
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6. Zero (Austrália, 2010, 12 minutos)
Com direção e roteiro Christopher Kezelos, essa animação australiana retrata um mundo segregado, regido por um sistema numérico de valoração, sendo que o Nove é o topo da hierarquia social e o Zero é considerado desde o nascimento um pária, passando por todo tipo de preconceito e opressão. Isto é, a marca que carrega no peito determina que vida terá. Assim, uma característica é o fator para aceitação e para as oportunidades de crescimento ou ausência delas.
A história acompanha um desses Zero, que sofre bullying na escola, não consegue arranjar emprego, tendo a rua como moradia. No início, surge uma pergunta: como pode nada virar alguma coisa? E a resposta vem quando Zero conhece uma Zero-fêmea, que o trata com respeito, faz-lhe companhia, até acontecer o inevitável: os zeros se apaixonam.
O amor entre o grupo social rejeitado é proibido, já que há o temor da procriação gerar mais zeros. O sentimento que desperta em Zero o desejo de viver, enxergar cores e um futuro é o mesmo que as autoridades combatem, o que leva o casal à separação e Zero para a prisão.
Zero é um conto de superação, de alguém condenado à solidão forçada em uma sociedade dividida em castas, que encontra no amor e na coragem de compartilhar sentimentos um modo de sobreviver às perseguições e à desaprovação por ser quem se é. Deste modo, em um mundo que deveria celebrar a diversidade, Zero representa todos que sofrem algum tipo de discriminação ou preconceito.
O final guarda uma surpresa, que pode ser entendido como místico ou que apenas mostra que todos nós somos especiais.
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7. Hair Love (Estados Unidos, 2019, 6 minutos)
Com três mentes no comando, Matthew A. Cherry, Everett Downing Jr. e Bruce W. Smith, o vencedor do Oscar 2020 de melhor animação em curta-metragem trata de cachos, família e amor. Logo, de empoderamento negro. Para ser específico, empoderamento da mulher negra.
Zuri, a protagonista, é uma garotinha que acordar em um dia que percebemos ser especial. Ela quer arrumar os próprios cabelos, e para isso assisti um tutorial em companhia do seu gatinho. As tentativas não têm o resultado esperado. Depois de um tempo, o pai da menina vê a cena e, apesar da resistência – primeiro oferecendo um chapéu a filha e depois ousando domar a exuberância e poder dos cabelos da criança –, contribui com Zuri seguindo o passo a passo ensinado no tutorial.
Esses primeiros minutos têm humor e um pai perdido – apesar de ter tranças – a respeito dos cabelos da filha. Logo, é revelado que a mulher no tutorial é Ângela, a mãe de Zuri, que usa a menina como modelo em seus vídeos. O gesto de amor entre pai e filha é intermediado pelo ativismo, conhecimento e ternura da mãe.
Em um segundo momento, descobrimos onde está Ângela e o porquê de o dia ser especial.
Hair Love é uma história sobre representatividade, com os cabelos sendo um agente mediador e transformador, mas também de vínculos afetivos, orgulho e identidade sob a tutela do olhar infantil, com uma garotinha que exibe amor a si mesmo e pelas suas raízes.
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8. El Gatito (Argentina, 2012, 13 minutos)
O diretor e roteirista Pablo Siciliano acompanha as atribulações de um pequeno gato que vive nas ruas de Buenos Aires. Um dia, ao perseguir um rato, ele acaba no interior do caminhão de uma transportada e desembarca no deserto da Patagônia.
Seja assistindo uma pantera pelo vidro de uma loja de eletrodoméstico, seja enfrentando o primeiro perigo no deserto, o ataque de um gavião, o gatinho só tem uma coisa para se preocupar, que é sobreviver.
Ele é ágil e esperto, mas guarda ainda certo desconhecimento do mundo, e essa jornada o coloca diante de algumas presepadas e de algumas alianças para escapar da aventura indesejada. Para chegar aos caminhões que param no posto de gasolina, o felino precisa vencer o obstáculo chamado cachorro. No percurso, salva uma coruja, com quem tenta escapar da aridez da região patagônico, mas sem sucesso. Há também um tatu que aparenta ter algum dom místico.
A animação mostra como o bichano tem que enfrentar o medo, as ameaças e o receio de não encontrar uma saída, contudo é um conto sobre resiliência e a busca de um lugar no mundo. Então, o pequeno animal usa a seu favor o próprio instinto para encontrar soluções de prosseguir (ou para fugir) nessa terra praticamente inóspita.
Siciliano cria um personagem simpático e as condições para que o ermo se revele o local em que casa e futuro possam se conjugar.
El Gatito tem na bagagem o Prêmio do Público no Festival Internacional de Cinema de Mar del Plata 2014 e no Festival de Cinema de Animação de Lima 2015, além disso, faturou o troféu de Melhor Animação da Televisão Digital Aberta no Festival Mendoza Proyecta 2014.
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9. Cordas (Espanha, 2013, 11 minutos)
Cordas é a emocionante história da amizade entre uma menina extrovertida e um garoto com paralisia cerebral, que, narrada com sensibilidade e apuro visual pelo diretor Pedro Solís García, autor também do roteiro, revela como o carinho, o cuidado e a solidariedade são combustíveis para a felicidade – ainda que temporária.
Laureado com o Goya de melhor animação de 2014, essa pérola espanhola, traz Maria, que ao conhecer Nicolás, seu novo colega de classe no orfanato onde residem, encanta-se e se sente curiosa por ele. Não ignorando as limitações do garoto, Maria se aproxima e cria maneiras para que ele se divirta e passa ao largo da exclusão. Com criatividade, a menina interagi com Nicolás e faz com que as atividades despertem satisfação, enlevo e a possibilidade de sonhar. As crianças pulam corda, jogam futebol, brincam de pirata ou leem contos de fada. A alegria de Maria contagia o rapazinho, que se abre para o mundo apresentado pela garota.
O título nos faz refletir com corda tem vários significados, causando uma forte simbologia, pois é o intermediário entre as crianças, como meio utilizado por Maria para a interação com Nicolás, movendo-o, manipulando as suas ações, mas fazendo-o imaginar como é entrar em contato com os objetos, dividir uma brincadeira, assim como é a representação do vínculo que os une, do “destino” que ata um ao outro. Destino entre aspas pois é uma escolha de Maria ultrapassar o estranhamento para chegar à amizade.
A história é baseada na relação afetiva dos filhos de Solis García: da menina Alessandra com o irmão Nicolás, que é portador de paralisia cerebral. Uma homenagem paterna ao carinho e a superação das diferenças.
Cordas nos fala sobre amizade, respeito à diversidade e inclusão educacional. Uma imperdível lição de amor.
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10. Òpárá de Òsùn: Quando Tudo Nasce (Brasil, 2018, 4 minutos)
“Quando Oxum pisou a terra/ E a vida se deu nas árvores, nos animais e nas crianças/ Um mundo lavado de Axé conheceu/ Onde tudo nasce, a bênção da criação”.
No candomblé, Oxum, em iorubá Òsùn, é a Orixá das águas doces, a deusa da fertilidade. Seu nome se origina do rio Osun, localizado no sudoeste da Nigéria. Oxum também representa o poder feminino. Água, fecundidade, vida e amor são palavras que transbordam nessa animação que é um documento de devoção à Orixá.
Òpárá de Òsùn: Quando Tudo Nasce, dirigido por Pâmela Peregrino, a partir de um roteiro que é criação coletiva do Ábassà da Deusa Oxum de Idjemin, localizado em Paulo Afonso (BA), é todo realizado em stop motion, uma técnica que colabora para construção de imagens envolventes e para demonstrar toda a fé e beleza presente na religião e a importância de Oxum para o processo da vida.
O sertão da Caatinga, em que a aridez insiste em castigar, é o cenário para qual Oxum trará vida a partir das águas e do revigoramento da natureza. Essa é a primeira sequência do curta-metragem. Vale destacar a preparação de Oxum, com sua veste dourada, sua alfange e espelho. Em seguida, a Orixá auxiliará no nascimento do filho da humanidade, mantendo o ciclo da existência. O capricho da cena nos faz ver as lágrimas da mãe, que o socorro de Oxum fará brotar felicidade. O terceiro ato traz a oferenda em agradecimento à deusa da fertilidade.
Animação singela, delicada e rica em detalhes e significados, Òpárá de Òsùn: Quando Tudo Nasce deve ser assistido por amantes da sétima arte, exibido para crianças e conhecido por quem deseja saber mais sobre o candomblé, sua história e lendas.