Garota, eu vou para a califórnia: (fui!) – Por Luiz Renato de Souza Pinto
“Quando dizemos que uma pessoa, ou uma coisa, não tem valor algum, dizemos que não vale um pequi roído, certo? Nesta coluna literária, os textos se debruçarão sobre aspectos constitutivos de narrativas, sem que os juízos de valor se sobreponham à experiência da escrita. Não escrevo sobre todos os livros que gosto, mas sobre os quais me considero apto a dialogar com minha própria história e capacidade leitora. Aqui todos valem, se não o que pesam, mas o que representam para mim neste mundo em que distopia passou a ser apenas mais um eufemismo (e não é de literatura que estou falando).”
Luiz Renato de Souza Pinto. Graduado em Letras-Literatura (UFMT), atua na docência desde 1998; Mestrado em História (UFMT) e o Doutorado em Leras (UNESP). Atualmente trabalha com Ensino Médio e Superior (Graduação e Pós-Graduação) no IFMT. Desenvolve oficinas de Escrita Criativa (em verso e prosa); Poesia e Filosofia; Letra e Imagem; Narrativas Curtas; Estruturas de Romance; Literatura e Outras Artes. Possui três romances publicados: Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Xibio (2018), Cardápio Poético (1993) e Gênero, Número, Graal (2017) livros de poemas. Autor também de Duplo Sentido (contos e crônicas), e mais dois no prelo (pequenas narrativas), a exemplo de A filha da Outra (2020), o mais recente. Reflete acerca da construção de personagens, enredos, espaços e tempos, mas, sobretudo, sobre a posição do foco narrativo, os olhares sobre as personagens e as coisas, o entorno.
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Garota, eu vou para a califórnia: (fui!)
Tenho a sensação de que somos as piores testemunhas de nós mesmos. (BENSIMON, 2016, p. 105).
“sinuca embaixo d’água” (2009), “Todos nós que adorávamos caubóis” (2013) e “O CLUBE dos JARDINEIROS de FUMAÇA” (2017) são três livros de ficção de Carol Bensimon que eu já havia lido. O primeiro, na ficha catalográfica é indicado como romance brasileiro e os demais como ficção. Os títulos estão grafados aqui como nas respectivas capas (maiúsculas e minúsculas); esta é uma primeira especificidade sobre a qual gostaria de comentar.
Dos três, prefiro imensamente o primeiro, de 2009, cujo título é grafado aparece em minúsculas. A trama perpassa o universo dos anos noventa em uma metrópole como Porto Alegre, embora pudesse se passar em Xangai, Lima ou Bombaim. As letras em minúsculo retratam um universo submerso em que os jogos (vorazes) pela sobrevivência são embalados pela geração roqueira entretida pelos sons do “Nirvana”.
A road novel, como alguns críticos gostam de se referir, ambienta certo frescor temático crescente. A; neste caso, pelas estradas poeirentas, como a autora me autografou em junho de 2017, quando de passagem por Cuiabá. Estrangeiras em território nacional, as personagens vagueiam pelo Rio Grande do Sul em busca de aventuras.
O vencedor do Jabuti, grafado quase em totalidade com maiúsculas, abre espaço para as minúsculas apenas com as preposições “de” (+ artigo masculino plural – os = dos) na primeira inserção e sozinha na segunda. O artigo definido masculino singular (O) e os três substantivos vêm grafados com destaque, funcionando como portadores do discurso. Mas nem só de ficção vive a escrita de Carol, como se comprova com a publicação de crônicas: “…, tendo a achar que as verdadeiras transgressões migraram do plano individual para o coletivo.” (2016, p. 8).
“Uma estranha na cidade” agrupa reflexões acerca de elementos componentes da cidade sobre os quais se depositam analogias com a própria configuração do texto e as relações comerciais com o objeto livro, “… desde os anos 80, fenômenos de contracultura têm suas características capturadas e incorporadas pelo mercado.” (2016, p.10-11). Claro que se podem observar elementos recorrentes e, sobretudo, a musicalidade que atravessa as obras.
Atualmente, podemos buscar a trilha sonora perfeita antes mesmo da memória se formar. Não precisamos contar com o acaso (nosso maior acaso é a função shuffle). Você sente a primeira fagulha de um momento especial, e então se apressa a escolher a música que amplificará aquele instante. (2016, p. 13).
Esse “atualmente” a que a crônica se refere surge como espécie de intervalo em que se abrange toda uma geração. Quando o livro foi publicado (2016) Carol estava com trinta e quatro anos. Nessas últimas décadas o mundo tem experimentado mudanças de comportamento de modo bastante acelerado. Claro que os impactos podem ser sentidos em todas as relações, incluindo na comunicação e cultura, sobretudo no que diz respeito à socialização de costumes e consumo.
“Há um cara que eu conheço que disse: não termino um livro há quatro anos. Ele estava sorrindo. Porque o mundo ficou rápido pra cacete e ele adora isso. Ele adora saber cento e quarenta caracteres sobre as coisas.” (2016, p. 18). Como imaginar um mundo sem a internet, seria possível para quem já nasce de frente para a tela, é alfabetizado pela imagem, aprende a digitar muito antes do que usar uma caneta? “Não há contracultura possível quando algo que nasce espontâneo vai parar em uma vitrine de shopping em um tempo ínfimo.” (2016, p. 27).
As crônicas de Bensimon tratam com muito bom humor essas nuances do mundo atual, como por exemplo, ao lembrar que “em países onde as pessoas precisam limpar as próprias privadas não há o menor risco de se abrir um notebook no ônibus”. (2016, p. 118). O vírus do Ipiranga parece nos acometer de bem mais do que isso. Gosto das imagens simétricas que o olhar de Carol traz para a crônica.
Se o gênero costuma ser visto obliquamente por muitos leitores, pode surpreender pela plasticidade, como também pelo engajamento. O olhar atento às ruas, nas quais ainda se veem “as sombras dos jacarandás esticadas na calçada” (2008, p. 14) dá conta dessa perspectiva. E mais, quando ao levantar a cabeça “Ficava observando o quadrado de céu que a nossa casa havia desenhado” (2008, p. 20).
Ler Carol Bensimon é crer que há vida inteligente no planeta. Nem todos estão bestificados no meio em que estamos inseridos. Apesar disso, “O homem gritava, apontava, cuspia. Uma retroescavadeira estava brigando com uma árvore que não podia correr” (2008, p. 66).
REFERÊNCIAS
BENSIMON, Carol. Pó de parede. 2. ed. Porto Alegre: Não Editora, 2008.
BENSIMON, Carol. Uma estranha na cidade. Porto Alegre: Dublinense, 2016.