Há velas em Mucuripe! – Por Luiz Renato de Souza Pinto
Quando dizemos que uma pessoa, ou uma coisa, não tem valor algum, dizemos que não vale um pequi roído, certo? Nesta coluna literária, os textos se debruçarão sobre aspectos constitutivos de narrativas, sem que os juízos de valor se sobreponham à experiência da escrita. Não escrevo sobre todos os livros que gosto, mas sobre os quais me considero apto a dialogar com minha própria história e capacidade leitora. Aqui todos valem, se não o que pesam, mas o que representam para mim neste mundo em que distopia passou a ser apenas mais um eufemismo (e não é de literatura que estou falando).”
Luiz Renato de Souza Pinto. Graduado em Letras-Literatura (UFMT), atua na docência desde 1998; Mestrado em História (UFMT) e o Doutorado em Leras (UNESP). Atualmente trabalha com Ensino Médio e Superior (Graduação e Pós-Graduação) no IFMT. Desenvolve oficinas de Escrita Criativa (em verso e prosa); Poesia e Filosofia; Letra e Imagem; Narrativas Curtas; Estruturas de Romance; Literatura e Outras Artes. Possui três romances publicados: Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Xibio (2018), Cardápio Poético (1993) e Gênero, Número, Graal (2017) livros de poemas. Autor também de Duplo Sentido (contos e crônicas), e mais dois no prelo (pequenas narrativas), a exemplo de A filha da Outra (2020), o mais recente. Reflete acerca da construção de personagens, enredos, espaços e tempos, mas, sobretudo, sobre a posição do foco narrativo, os olhares sobre as personagens e as coisas, o entorno.
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Há velas em Mucuripe!
De algum ponto entre o Mucuripe e Itapuã me sopra um vento forte, de cores largas, de tons brilhantes. Um relicário profano em espécie, como a tintura de um bom vinho, como a verve de um pássaro encantado que canta e me conta sobre o preço de cada cuspe. De onde estou, sinto apenas um movimento de corpos em direção ao mar profundo. Bem longe. “uma jangada partiu comigo da praia em direção ao mar ao som de Caymmy, não sei quem nem quantos a empurraram, deslizou pela areia molhada até imbicar levemente ao bater em uma pequena onda que se encerrava, e seguiu” (VALENTE, 2023, p. 11).
Parecia uma marolinha, até porque depois de um calote, criogenia e o patrimônio das pombas-gira, o que se esperar de um escritor contemporâneo? Surpresas, isso sim. É o que Leonardo nos traz a cada objeto-livro que escorre de sua lavra. Parecia uma onda. Só parecia.
o vento soprou forte, mas mexeu apenas de leve na vela e fora da arrebentação provocou ondinhas contínuas que não alteravam o curso das embarcações, ondas que nem puxavam, nem empurravam, o vento não comprometia a viagem e como tudo ao redor, mostrou-se forte sem ferir, a jangada singrou mar adentro (VALENTE, 2023, p. 12).
Sou como essa jangada. Invado o mar por dentro, comendo o vento pelas beiras, página por página, cada uma sendo a espécie de um porto em que ancoro a esperança e meus subterfúgios. “a jangada parou em um ponto de onde não tive mais noção de qual direção partiu, só vi mar e céu quase roxo com relâmpagos azuis” (VALENTE, 2023, p. 13). A noite escureceu e a lâmpada que iluminava a página se apagou bruscamente. O foco se transformava em breu. “outras jangadas deixaram a praia, todas comigo, não sei quantas, não vi mais a praia, apenas sei” (VALENTE, 2023, p. 13).
Deu vontade de perguntar, mas sabe como? Deu agora para inventar como fazia Clarice? “o mar convidou a entrar, voz suave e de afeto, da jangada percebi que a vela acesa do banheiro acenou lá de baixo” (VALENTE, 2023, p. 13). Sopra de Niterói essa onda nova, rarefeita, levada ao vento pela vela que sangra enquanto singra o mar alheio de monte. “da jangada, senti cheiro de bife à milanesa, mas não vinha da cozinha, os bolinhos de arroz om feijão e farinha boiaram no sangue coagulado formado na água suja dentro das panelas” (VALENTE, 2023, p. 14).
E viva a louça suja entulhando a pia de horrores. Santa ceia essa cheia de sobras. Apreendo quase todas as referências À jangada. Deixo que algumas se afundem nas águas do esquecimento. “no mar quente, 17 de novembro de 1978, sobre a jangada, 15 de dezembro de 2019” (VALENTE, 2023, p. 15). Intervalo de quarenta e um anos. “sobre a jangada, uma boca torta e dormente implorou por ajuda” (VALENTE, 2023, p. 16). Tudo acontece sobre a jangada, território livre, embora preso à vastidão do mar.
Sobre a cabeça um céu azul, de brigadeiro, e todo o peso da tradição naquele céu. No que já era seu. “no céu violáceo sobre a jangada surgiram aviões coloridos, teco-tecos em tons cítricos, cinco ao todo – laranja, limão, piscina, mostarda e melancia, juntos em um sobrevoo em V” (VALENTE, 2023, p. 17). E as ondas naquele velho mar. O lobo e o mar; um tsunami de ideias pontiagudas. “a jangada balançou, o útero contraiu e a porta com a placa de mãe apareceu na superfície, boiou em meio ao sal diluído do mar feito feijão ralo, toda arranhada, repleta de lascas abertas como destroço de um naufrágio, sem que eu conseguisse alcançá-la” (VALENTE, 2023, p. 18).
A placa com cara de mãe, um software desatualizado de maternidades. “a jangada começou a se movimentar sem que eu estivesse nela ou decidisse sua direção, mas também não foi o mar quem determinou, agora sei que foi ela mesma” (p. 25). Ela, ela mesma, uma lesma se arrastando pela correnteza. E a placa autóctone intacta. “do vão da porta sem rodo vedador, o mar cor de feijão ralo entrou sem licença como uma inundação, a pedido da jangada, na tentativa de conter o pai” (VALENTE, 2023, p. 26).
Afasta de mim outro cálice, meu pai. “sentado no sofá sujo da sala, ao olhar para cima, avistei o fundo da jangada tremulante pelas ondas no lugar do teto” (VALENTE, 2023, p. 34). Escreve coisas sem nexo, sem sexo, com plexos. “no teto, o fundo da jangada começou a balançar mais que o habitual” (VALENTE, 2023, p. 35). O hábito sempre fazendo o monge enquanto “a rua da fila repleta de gente que não conheço começava no fundo e subia feito ladeira íngreme pelo mar até a jangada parada” (VALENE, 2023, p. 38). Preparada, “a jangada tremeu de repente, sacudida de um lado para o outro por ondas assustadas com a rua lotada, ondas que também tremeram a praça” (VALENTE, 2023, p. 39).
Aviões de todos os tipos sobrevoando a carne podre de cada presa. “vestidos como na procissão da porta morta e montados nos cinco teco-tecos cítricos [três pais e duas tias], deram rasantes sobre a jangada, lançaram pedras de cuspes e aspergiram cuspe ácido em estado líquido, ataque químico, bombardeio premeditado” (VALENTE, 2023, p. 70).
Tudo muito distante do que eu já experimentara. Tudo estranho demais para conter algum ponto de vista novidadeiro. Tudo em cima. “o mais próximo da jangada [planeta] era o mais parecido com a Terra, os oceanos tinham cor e textura de cocadas moles brancas e os continentes feitos de bifes à milanesa bem tostadinhos” (VALENTE, 2023, p. 112). A cocada baiana de Caymmi. “um enorme cansaço e o receio de novos encontros-emboscadas me fez decretar a jangada sobre o mar cor de feijão ralo e sob o céu violáceo meu perímetro de segurança” (VALENTE, 2023, p. 133).
Jangada – corpo – casulo: “a jangada tornou-se minha casa, o refúgio seguro e confortável e certo de uma travessia incerta” (VALENTE, 2023, p. 134). A religiosidade materializada em forma de sopro e vento. Invento sombrio “no ar cor de feijão, um cardume de peixes-hóstias submergia e voltava à superfície num balé cadenciado e disruptivo da ordem que regulava o que existia embaixo e o que pertencia à superfície, seguia a jangada” (VALENTE, 2023, p. 148). Corpo e sangue. “o certo e o errado, breu mentiroso que simulou converter o tudo em nada na ambição de desinventar Deus, mas o tudo ainda morava lá” (VALENTE, 2023, p. 149).
Verdadeiro simulacro em forma de livros que “mergulharam em rasantes síncronos e raptaram os peixes-hóstias assustadiços e indefesos com suas presas bestiais” (VALENTE, 2023, p. 150). Uma calmaria soprava agora em direção às areias da praia. “sentado sobre enormes pedras de minha história, fósseis apaziguados e cravados em areia aveludada, avistei no horizonte as jangadas que voltavam” (VALENTE, 2023, p. 167). Eu era um grão daquela areia em que “as jangadas se aproximaram rápido da costa e deslizaram quase que juntas da arrebentação à faixa de areia encharcada, que com a espuma rala do fim das ondas desenhava a fímbria entre a terra firme e o oceano” (VALENTE, 2023, p. 168).
Terminada a leitura me senti como quem volta de um banho de mar e leva um caixote, já no raso, “o que desceu de uma das jangadas em minha direção vestia a roupa de mergulho dourada com capacete redondo cor de cimento queimado com a qual já havia me encontrado” (VALENTE, 2023, p. 168). Acho bem possível que esse livro não ganhe prêmio algum. Mas tenho errado bastante em meus palpites, ultimamente.
REFERÊNCIAS
MONTEIRO, Leonardo Valente. Relicário de cuspes. Niterói: Edição do autor, 2023.