“Henry, June e eu: delírios eróticos” de Anaïs Nin – Por Andri Carvão
“O canal que mantenho no YouTube desde outubro de 2021, Poesia Nunca Mais, onde indico livros e compartilho algumas de minhas leituras, deu margem a que eu escrevesse minhas impressões de leituras como roteiros para a realização dos vídeos. A princípio em forma de tópicos, resolvi organizar os escritos de modo a que pudessem ser lidos em algum meio: blog, rede social, site etc. Com um texto sobre Henry, June e eu: delírios eróticos de Anaïs Nin prosseguimos com a coluna “Traça de Livro: …impressões de leitura…”.
Vida longa à Ruído Manifesto e aos seus leitores!”.
Andri Carvão é formado em Letras pela Universidade de São Paulo, autor de Um sol para cada montanha, Poemas do golpe, Dança do fogo dança da chuva e O mundo gira até ficar jiraiya, dentre outros. Apresenta o canal no YouTube Poesia Nunca Mais e publica poemas quinzenalmente no site O Partisano.
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Henry, June e eu: delírios eróticos – Anaïs Nin
Aos 7 anos, a francesa Anaïs Nin (1903-1977) decide ser escritora, assinando “Anaïs Nin, membro da Academia Francesa”. Aos 11, começa a escrever o seu famoso diário, de 1914 a 1977, totalizando cerca de 35 mil páginas. Como sua ficção não gerava maiores interesses por parte do público leitor tanto quanto as páginas de seus diários, Anaïs Nin passa a publicar trechos destes ou a ficcionalizar a sua vida. Desse modo, Henry, June e eu: delírios eróticos é um romance extraído de seus diários íntimos, onde relata o período em que a autora francesa conheceu e se relacionou com o escritor americano Henry Miller. O livro mantém a forma de diário em primeiríssima pessoa. No interior dos capítulos, nomeados por meses daquele longínquo ano de 1931, Anaïs Nin compila bilhetes e trocas de cartas entre ela e Henry Miller, dentre outras personagens mencionadas no livro. “Nossas contendas: ele em sua linguagem, eu na minha. Nunca uso as palavras dele. Acho que meu registro é mais inconsciente, mais instintivo.” (p. 47)
No sétimo ano de casada com o banqueiro Hugh Guiller, o casal se propõe a viver um relacionamento aberto. Não sabem como começar, porque têm dúvidas sobre o quão positivo ou prejudicial seria para a relação do casal, pois se amam apesar das brigas constantes.
Em dezembro de 1931, o escritor americano Henry Miller entra na vida do casal Anaïs e Hugh. Trata-se do “período parisiense” a que se refere o escritor americano no incensado Trópico de câncer, publicado na França em 1934 e proibido nos EUA até 1961.
“Conheci Henry Miller. (…) Quando ele saltou do carro e se dirigiu para a porta onde eu estava esperando, vi um homem de que gostei. Em seus escritos ele é extravagante, viril, animal, magnificente. É um homem a quem a vida embriaga, pensei. É como eu.” (p. 12)
Além de Miller e do marido de Anaïs, chamado de Hugo no livro, outra figura masculina de destaque é o amigo e confidente Eduardo, que se declara a ela, porém sem ser correspondido. Eduardo a aconselha sobre a iniciação nas práticas do seu “desejo de orgias” junto ao marido.
“A vida de instintos liberados é composta de camadas. A primeira camada leva à segunda, a segunda à terceira e assim por diante. No final leva a prazeres anormais. – Como Hugo e eu poderíamos preservar o nosso amor nesta liberação dos instintos ele não sabia. Experiências, sem as alegrias do amor, dependem de distorções e perversões para o prazer. Prazeres anormais matam o gosto pelos normais.” (p. 11)
Duas coisas excitam Anaïs Nin num homem: o beijo e a imaginação. E Miller a excita das duas maneiras. Embora confesse que, no primeiro encontro, para mostrar a ele as provas de seu romance de estreia, é atacada de tal forma (ele, forte e viril e ela tão frágil, “uma virgem prostituta”, conforme suas palavras), que quase é estuprada pelo desejo intenso e pela brutalidade de Miller, de modo que naquele momento, consegue se desvencilhar.
O que parece uma brincadeira, como os primeiros jogos sexuais com John e Drake, seus relacionamentos extraconjugais, se intensifica com relação a Henry Miller. A curiosidade pelo estrangeiro lhe desperta o desejo. Anaïs reconhece a sua libido em Miller, o que a leva a June, companheira do escritor. Hugo sente ciúme de Miller, teme perder Anaïs e tem repulsa por June. Henry é violência e June, destruição.
“Henry (…) tem grandes ódios. Eu não. Tudo comigo ou é veneração e paixão ou pena e compreensão. Raramente odeio, embora quando odeie, odeie com furor assassino. Por exemplo agora, odeio o banco e tudo ligado a ele. Também odeio pinturas holandesas, chupar pênis, festas e tempo frio chuvoso. Mas estou mais preocupada com o amor.” (p. 16)
E mais adiante:
“June dissera que ele estava inquieto, porque tem mais ciúme de mulheres do que de homens. June, inevitavelmente, semeia loucura. Henry, que me considerava uma pessoa ‘rara’, agora me odeia. Hugo, que raramente odeia, odeia June.” (p. 25)
Henry Miller chega em Paris sem um tostão no bolso. Vive miseravelmente com sua companheira June. Anïs Nin se envolve com o escritor e o homem Henry Miller e, assim, passa a financiar a vida e a carreira literária dele com o dinheiro do marido banqueiro. A relação entre os dois amantes, leva a escritora francesa a se interessar por June, formando o triângulo amoroso a que Hugo não participa fisicamente, excitado apenas por tomar conhecimento.
“Um rosto surpreendentemente branco, olhos ardentes, June Mansfield, a esposa de Henry. Quando ela veio em minha direção da escuridão do meu jardim até a luz da entrada, vi pela primeira vez a mulher mais linda da Terra.”
(…)
“No final da noite eu era como um homem, terrivelmente apaixonado por seu rosto e corpo, que prometia tanto, e odiava o eu criado nela por outros. Outros sentem por causa dela; e por causa dela, outros escrevem poesia; por causa dela, outros odeiam; outros, como Henry, amam-na apesar deles mesmos.” (p. 17)
O sexo entre Anaïs e Henry é aditivado por longas conversas sobre literatura, filosofia, poesia e afins. Henry Miller é um homem mais velho e, por isso, mais experiente do que a jovem Anaïs Nin; enfim, o tipo de homem que ela tanto deseja. Esse relacionamento de corpo e alma com o escritor americano, a faz perder gradativamente o interesse pelo espírito burocrata de seu marido Hugo. “(…) eu não pude suportar Hugo lendo os jornais e falando sobre trustes e um dia bem-sucedido.” (p. 24) Ela o considera um homem sem alma e se tortura por deixar de amá-lo. “Domingo. Hugo vai jogar golfe. Visto-me ritualisticamente e comparo a alegria em me vestir para Henry com minha tristeza em me vestir para banqueiros idiotas e reis do telefone.” (p. 55) Para Anaïs Nin “(…) uma vida padronizada não é vida.” (p. 50)
Anaïs, jovem educada na melhor tradição europeia, se sente atraída pelo fato de June ser uma mulher extravagante, cheia de opiniões e, de certa forma, tão tagarela, irrefreável quando começa a falar sobre a sua experiência de vida tão peculiar. Fato este que, com certeza, estimulou o relacionamento de June com Miller, por ela se apresentar como um verdadeiro repositório de estórias.
“O que me deixou doente agora? June. June e sua atração sinistra. Ela já tomou drogas; amou uma mulher; fala na linguagem de tiras quando conta histórias. E no entanto conservou aquele incrível e ultrapassado sentimentalismo.” (p. 21)
June teve um caso com a escultora Jean, algo que ela não consegue resolver, que permanece no limbo de sua consciência. Esse amor mal resolvido de June é motivo de ciúmes e de brigas intensas com Henry. Como na Quadrilha de Drummond: “– June tinha lágrimas nos olhos quando falou de sua generosidade. – E eu pude ver que ele a amava por isso. Em seu romance está claro que a generosidade de June não se estendia a ele – ela o torturava constantemente – mas a Jean, porque ela era obcecada por Jean. E o que faz a Henry? Ela o humilha, deixa-o carente, destrói sua saúde, atormenta-o – e ele floresce; escreve seu livro.” (p. 31)
Semelhante ao que faz por Henry, Anaïs cobre June de presentes, além de ser generosa com dinheiro. “Nossos medos de desagradar uma à outra, de nos desapontarmos mutuamente eram os mesmos.” (p. 23) June despeja um caminhão de experiências e Anaïs retribui cobrindo-a de joias e vestidos. “O luxo não é uma necessidade para mim, mas coisas bonitas e boas são.” (p. 32)
Enfim, Anaïs Nin e Henry Miller estão embriagados pela paixão: a paixão pela Literatura, a paixão pelos livros escritos e a escrever, apaixonados pela vida. “O amor de apenas um homem ou uma mulher é uma prisão.” (p. 29) Estão incestuosamente irmanados pelo sexo, numa verdadeira confusão, ou melhor, numa masturbação mental entre paixão/sexo/amor. “A dor é algo a ser dominado, não estimulado.” (p. 31)
Anaïs Nin devora os romances recém-escritos por Henry Miller: Moloch e Primavera negra. Henry Miller retribui lendo excertos dos diários e o estudo de Anaïs Nin sobre a obra de D. H. Lawrence (autor de O amante de Lady Chaterley). “Escrever não é, para nós, uma arte, mas respirar.” (p. 44) Influenciada pelo casal Henry e June, Anaïs mergulha na leitura de Dostoiévski.
“Estou presa numa armadilha, entre a beleza de June e o gênio de Henry. De maneira diferente, sou dedicada a ambos, uma parte de mim vai para cada um deles. Mas amo June loucamente, insensatamente. Henry me dá vida, June me dá morte. Devo escolher, e não consigo. Para mim, dar a Henry todos os sentimentos que tenho tido com relação a June é o mesmo que dar meu corpo e alma para ele.” (p. 38)
Tudo vai às tontas, até que June volta para a América – para os braços da escultora Jean?
“– Sim, eu a odeio – diz Henry –, porque vejo por suas anotações que nós somos dois ingênuos nas mãos dela, que você está iludida, que existe uma direção perniciosa, destrutiva para as mentiras dela. Perfidamente, elas têm a intenção de deformar-me aos seus olhos, e você aos meus. Se June voltar, ela nos envenenará um contra o outro. Eu temo isso.” (p. 62)
Anaïs abraça Henry com as pernas, como a se agarrar a uma tábua de salvação em pleno naufrágio.
“As melhores mentiras são meias-verdades.” (p. 55)
Há anos desejo (esta é a palavra adequada) Henry e June de Anaïs Nin. Quando adolescente mergulhei profundamente até me afogar na obra de Henry Miller. Foi difícil me desvencilhar. Há anos não leio nada do autor. Mas é inegável que tenha deixado marcas, cicatrizes literárias. A descoberta e o interesse pela obra da autora francesa, partiu da versão cinematográfica de Henry e June, estrelada por Maria de Medeiros como Anaïs Nin e Uma Thurman como June Mansfield, que assisti pela metade no Corujão, durante a madrugada. Há tempos procuro a edição da L&PM Pocket, mas, por fim, encontrei no Skoob e me contentei lendo essa edição da Círculo do Livro.
Edição lida:
NIN, Anaïs, Henry, June e eu: delírios eróticos, 177 p., tradução Rosane Pinho, São Paulo: Círculo do Livro, 1986.
Marcio Rufino
Amo esse filme. Me marcou e fez totalmente minha cabeça ao lado dos filmes de Quentin Tarantino e de Pedro Almodovar na minha juventude, nos anos 1990.