Impossibilidade, efemeridade – Por Vinícius da Silva
Eu tive um sonho. E quando acordei, todo o meu corpo doía. Só nos restavam três horas até a próxima tempestade. Tínhamos que encontrar um lugar seguro para proteger nossas cabeças do céu que mais tarde cairia sobre nós. Após a primeira tempestade, foi-me oferecido um barco para voltar para casa, mas eu sabia que estar no mar não seria seguro naquele momento. Pelo menos, não no porto. Eu tinha que pegar o trem de volta. A viagem levaria cerca de uma hora e meia. Chegaria a casa em segurança a tempo de me proteger da tempestade, com minha família. Mas nada disso aconteceu.
O teto do teatro já havia desabado sobre nós. Mas nós estávamos vivas. Mas não suficientemente seguras. Na primeira tempestade, sozinha, agarrei-me a uma barra de ferro para não ser derrubada. E então vi minha mãe chegando. Meu irmão tinha ido embora. A tempestade o tinha levado embora? As forças do vento poderiam nos levar embora a qualquer momento. Estávamos vivendo a vida após o fim. Eles estavam voltando. Tivemos que fugir. As estruturas desta cidade não foram feitas para proteger nossos corpos. Suas políticas não foram feitas para nos manter vivos. Suas subjetividades só são realizadas através da negação das nossas. A única maneira, então, de não sermos levadas pela tempestade era tornar-nos a própria tempestade.
Estou pensando, aqui, em movimento. No movimento em direção a algo. No movimento de nossos corpos e imaginações em direção ao fim do mundo como o conhecemos. De certa forma, este movimento, em direção ao fim, é um movimento de fuga. Isso é fugitividade. Isto é o que temos feito durante séculos para nos mantermos vivas, preservar nossas memórias e continuar nossas tradições. Com este movimento, exigimos uma nova gramática ontológica e social. Às vezes, esta nova gramática pode parecer impossível, inviável, mas como bem disse Pêdra Costa, “quando se trabalha com impossibilidade, tudo pode ser possível”.
Jota Mombaça. SPELL TO BECOME INVISIBLE, 2019. Trabalho realizado com a artista Musa Michelle Mattiuzzi. Foto: Caroline Lima/Reprodução site 34º Bienal
Lembro-me de sonhar com uma caverna escura, onde tentamos apalpar as paredes para nos localizarmos ou usar nossas vozes para ativar sensibilidades sônicas. As ondas sonoras eram necessárias para fazer ricochete nas paredes da caverna para que pudéssemos ouvir e mapear a catástrofe. Durante muito tempo, tudo o que tínhamos eram nossas vozes. E nossos gritos, mesmo no porão dos navios, não foram ouvidos, porque estávamos em estado de suspensão no espaço e no tempo. Mas na caverna, o som salta da parede e nós sabemos onde estamos. Estamos depois do fim.
Jota Mombaça. AVIMENTO Nº 1: A FUGA SÓ ACONTECE PORQUE É IMPOSSÍVEL, 2021. Pintado por Coletivo Feminino de Arte de Sorocaba (Cofas). 3ª Frestas – Trienal de Artes 2020/21 – O rio é uma serpente, Sesc Sorocaba, Sorocaba, SP, Brasil. Foto: Reprodução
Estamos nos agarrando à possibilidade de reconstruir o mundo. E isto é uma emergência, porque estamos morrendo, todos os dias. Esta é a tarefa do mundo. Ele nos mata. Mas não podemos continuar morrendo. Devemos abolir toda forma de opressão a fim de reconstruir o mundo. Afinal, a Terra ainda há de se tornar um lugar de cura, mas primeiro, ela deve queimar.
Daqui, já posso ouvir as águas de Kalunga. Já posso ouvir os sussurros abafados dos mundos que sempre estiveram entre nós mas que foram escondidos pelas armadilhas do colonialismo. Para atravessar as encruzilhadas, é preciso voltar ao mar e ouvir seus sussurros e segredos. Voltar para a Terra e ouvir as histórias dos mais velhos.
Lembro-me de acordar assustado, com medo, com a sensação de não estar segura por dentro. É preciso aprender a ouvir os sinais que a casa nos dá, a ouvir os sinais e a encontrar esconderijos dentro da terra. É preciso escavar este solo até encontrar o mar para ouvir seus sussurros. Escutar desesperadamente como alguém que procura algum segredo, como alguém que quer voltar para algum lugar. Para onde vamos quando tudo o que nos resta é nossa existência e um grito abafado?
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No laboratório do tempo, coluna assinada por Vinícius da Silva, as coisas não são o que realmente são (ou que pensamos ser); os sonhos deixam de ser sonhos e passam a ser partes da vida. Nesta coluna, quinzenalmente, Vinícius escreverá a partir da interface entre artes visuais, filosofia e literatura, buscando realizar isto que o escritor chama de “experimentos” (ora textos ensaísticos, ora poemas longos) sobre tempo, esquecimento, futuro, e outros experimentos possíveis para o laboratório do tempo. Nesses encontros, Vinícius mais suscitará questões do que tentará respondê-las, pois é dessa forma que o pensamento atinge o seu nível ótimo de curiosidade para conhecer e acessar as coisas. No entanto, o laboratório do tempo nos desafia a esquecer de tudo, menos de quem somos ou de nossos simulacros; você aceita o desafio?
Vinícius da Silva. Graduando em Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas na Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde 2020, da Silva apresenta o Podcast Outro Amanhã, ministra cursos livres sobre o pensamento de bell hooks, Teoria Queer, entre outros temas de pesquisa, e é revisor e atua no setor de Pesquisa Qualitativa da ONG TODXS. Possui experiência e interesse de pesquisa nas seguintes áreas: Filosofia Política, Teoria Queer, Arte Contemporânea, Poéticas Visuais, Teoria Feminista Negra e Artes Plásticas. Site: https://www.viniciuxdasilva.com.br/