Inscrever sob a pele, a asfixia – Por Ariadne Marinho
“À deriva. E a flexão de um verbo, ‘derivar’. É a partir dessa imprecisão, ou da conjunção de várias imprecisões, que propomos problematizar os atravessamentos que compõem o ser e o devir. Os modos de ver e de estar no mundo”.
Ariadne Marinho é historiadora, pesquisadora e mãe de Dionísio e Tom. Cuidadora da gata-idosa Cavalo de Fogo e da jovem cachorrinha Frau Caramello. Doutora em História pela UFMT.
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Inscrever sob a pele, a asfixia
A literatura de Thiago Costa, em sua obra de estreia “mata rasa/cova grande” (Editora Rizoma, 2022) performatiza diversas realidades, misturando sensações. Um caleidoscópio, um cosmos. Ele circula pelo mundo vendendo fantasia. É realmente um convite para conhecermos os interiores de outros países, afirma Costa, que um Brasil miúdo, cinza, selvagem, abriga. São trechos distantes, violentos, repletos de desesperança. Não existem remédios para nossa dor. É jazz. São também fragmentos cotidianos, sinestésicos. A janela aberta, quando não há vento. Seus escritos desenham sujeitos fantasmas, a perenidade de suas jornadas, os ruídos de dentro. Ora fustiga medos, ora fúria, nossos anseios de mortes e aniquilação. A descrição tão material da miséria incomoda, fere o estômago, provoca ânsia, nojo. Ou assim deveria sê-lo. Estou cheio de dor. Cheio de dúvidas. Cheio de dor. Thiago Costa enfatiza o silêncio, sua tirania no interior de casas envelhecidas, deixadas para trás, vazias, todos ausentes. Trancada por dentro, onde tudo agora é só saudade. São singelas frações, extenuantes, juntando emoções, o sofrer. Como corpos sem bordas, sem limites. Caminho pelas fronteiras moventes que absorvem outros corpos. Suas desventuras são reveladas em planos, tons sobre tons, como quadros ou imagens desde os quais emergem sertões desconhecidos, um fantástico agreste adentro, o amplo país de Mato Grosso. Em seu núcleo, um grande rio misterioso, de imensidões secretas, de animais medievais, maravilhas inclassificáveis. Os personagens centrais, como salientado, são os andarilhos, andrajosos, demasiadamente humanos, quiçá quiméricos, seres que perderam o encanto, perdidos, na conjunção do entroncamento e da blasfêmia. Em seus contos persiste a infelicidade, a contida comoção. Abundam as veredas solitárias de um mundo em suspensão. Acompanhar sua literatura é difícil. Suamos, rodopiamos, exaurimos. Nos contagiamos com o torpor da dança, da oferenda, dos cânticos. Endurecidos pelo sofrimento constante, pela fome insaciável. Pobres, diabo. Cornudos. Desgraçados que enfrentam o rio, a noite eterna. A ternura é efemeridade, uma ausência bem marcada. Logo volta o incômodo, que nos enrijece. E abruptamente a vida perde o sentido. A beleza é nonsense. Mas a monumentalidade da natureza amansa, o rio aumenta em silêncio. O ar quente e seco umedece. O dia fica escuro. Sentimos repetir nossa própria vivência, singularizada, nas experiências inventadas ou reais de uma “mata rasa”, que em realidade é uma “cova grande”. E fixo na memória a cartografia de seu rosto sulcado, de muitos caminhos. Fechando os olhos, abafando o choro, tentando respirar. A angústia é onipresente naquele que é sujo, remendado, molambento. Apesar do absoluto realismo, a repetição e o exagero pretendem demonstrar a qualidade absurda, deveras patética do ser. Introduz-se aí novos elementos/dimensões ao texto, como a sonoridade, em uma espécie de cacofonia de palavras, cuja teatralidade nega o mimetismo. Existe de fato uma ambivalência. A grandiloquência não é senão a expressão do ridículo, da condição irrisória dos eventos ou cenários narrados. Do mesmo modo que no tacanho e no débil Costa identifica uma enormidade, virtudes, uma rara altivez capaz de encarar as brutalidades reiteradas da vida e, ainda assim, continuar a batalha. É o caso, entre outros, dos cães de rua Pereba e Lombriga. E também da figura misteriosa que predica em “Zoonomia”. E, de maneira ainda mais enfática, nas personagens sem rumo do ótimo “Terra Adentro”, que fecha a antologia. Meu mundo está dentro de si. Já não me cabe outra coisa, já não me cabe mais nada senão o vazio. Meu mundo está diante de mim. E chora. O cerrado de Thiago Costa, a “mata rasa”, tomado de procissões acrônicas, empoeiradas, desmanchando-se, de promessas vãs, de “covas grandes”, assemelha-se à uma distopia, um fragmento de apocalipse. Larga, lenta, silenciosa. Que gruda na pele, e asfixia.
São ao todo 27 contos, escritos entre os anos de 2012 e 2022. Publicado pela Rizoma Projetos Editoriais, com sede em Santa Catarina, a pré-venda começa no próximo dia 18, no site da editora.[1] O livro também é um dos selecionados para compor o cronograma de lançamentos da Casa Gueto – espaço alternativo que reúne 13 editoras independentes brasileiras; ao lado da Rizoma, as editoras Feminas, Primata, Quase Oito, Reformatório, Urutau, Kotter Editorial, Editacuja, Aboio, Patuá, Mondru e MoMa Editora – durante a Feira Literária de Paraty/RJ, a FLIP, entre os dias 23 e 27 deste mês de novembro. Além de Thiago Costa, o internacional e tradicional evento recebe este ano, em sua programação principal, a cubana Teresa Cárdenas, autora dos premiadíssimos “Cartas para a minha mãe” (1997) e “Cachorro velho” (2005), e a mais recente Nobel de Literatura, a francesa Annie Ernaux.
É, portanto, com uma escrita rasteira e sufocante, melindrosa e indigesta, mas doravante fundamental, que Thiago Costa inscreve “mata rasa/cova grande” no cenário da grande literatura brasileira contemporânea.