Isso que se chama de amor é trabalho não pago – Por Ariadne Marinho
“À deriva. E a flexão de um verbo, ‘derivar’. É a partir dessa imprecisão, ou da conjunção de várias imprecisões, que propomos problematizar os atravessamentos que compõem o ser e o devir. Os modos de ver e de estar no mundo”.
Ariadne Marinho é historiadora, pesquisadora e mãe de Dionísio e Tom. Cuidadora da gata-idosa Cavalo de Fogo e da jovem cachorrinha Frau Caramello. Doutora em História pela UFMT.
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Isso que se chama de amor é trabalho não pago[1]
Um dia após a primeira fase do Exame Nacional do Ensino Médio (o famoso Enem), realizado em 05/10, iniciou-se o burburinho: “Você viu o tema da redação do Enem 2023? Com certeza é ideologia de gênero!”, “Foi um ‘abestalhado’ [sic] que fez este ‘textão’ de tema”. “Tantas coisas importantes acontecendo e o animal pensou em um tema nada a ver”. “Como se a mulher já não tivesse reconhecimento o suficiente, tem até um dia dela”. “Este governo não pensa em nada! Nem eles sabem como solucionar e querem que um adolescente saiba”. “Mulher pode ficar em qualquer lugar: na cozinha, na sala e/ou no quarto. A casa é toda dela”. Estas frases são apenas alguns dos absurdos que eu ouvi ao longo da minha segunda feira, dia 06 de novembro, transitando em lugares cotidianos distintos, entre a escola em que trabalho, o posto de saúde e o mercado. A abominação masculina em discutir a equidade de gênero beira um surto. Para manter seus privilégios de maneira inquestionável e soberana, deve-se invisibilizar a mulher. Por isso, grande parte dos homens – a esmagadora maioria – são gaslightings: expressam uma personalidade dominadora, abusadora, estupradora, assassina, desenvolvendo também outras opressões.
Para a historiadora italiana e filosofa marxista, Silvia Federici (1942), o acúmulo primitivo do capital promoveu um interstício, uma cisão. Para a pesquisadora, “o trabalho doméstico é o mais importante trabalho da sociedade capitalista”[2], porque é a partir daí que se origina os trabalhadores e sem o qual não existe o trabalho. Como assim? O trabalho de organizar, de limpar, de administrar uma casa, o cuidado com as crianças, com os adultos (como o marido e os pais) e com os idosos. Ao lado dos afazeres domésticos cotidianos, a esposa dispõe dos afazeres sexuais e a obrigatoriedade da satisfação do marido. A exploração que as mulheres sofrem no corpo físico, psicológico e social fomenta a invisibilidade e aniquilamento, atravessando micro e macrocosmos de poderes, desde o familiar, o conjugal e o profissional. Todos esses espaços estabelecem um contrato – mesmo vivemos em uma sociedade contratualista, tecnocrata –, qual seja, o trabalho. Ainda que a mulher possa casar-se por amor (principalmente em um casamento heterocisnormativo), para muitas – afirma Federici – é apenas mais uma relação de trabalho não remunerado. O
“casamento e todas as legislações e todas as regras que organizam uma família nuclear são parte da função do trabalho da mulher. Ou seja, a própria família é trabalho da mulher. Tem na reprodução da força de trabalho. Em outras palavras, através do casamento existe uma troca entre homens e mulheres. O trabalhador assalariado torna-se o sustentador de sua esposa (nem sempre, pois muitas mulheres exercem dupla ou tripla jornada de trabalho). E esta presta serviço a ele. Isto, recai sobre todas as mulheres”[3]
É verdade que para muitas pessoas o casamento e sua manutenção ainda podem ser remontados, entre outras coisas, ao amor. Mas também é verdadeiro que a união matrimonial está cercada pela ideia de estabilidade e sustentação de um trabalho de cuidado que oportuniza ao homem a ratificação de seus privilégios. O que parece algo rotineiro, talvez sem maior importância, que é o cuidado de casa, das crianças, dos pets, dos idosos, na realidade é uma relação de trabalho não remunerado e invisibilizado, silenciado. É serviço pessoal para homens. É a sociedade capitalista que se capitaliza com a força de trabalho não remunerado e invisível. Para Federici, a “família, a casa são as fábricas das mulheres”[4]. Nesse lócus privado e oculto ao olhar externo, nós mulheres realizamos todas as atividades necessárias, quase que de maneira ininterrupta e sem reconhecimento de direitos. Para permitir que os trabalhadores (homens, em sua grande maioria) possam sair para os seus postos de ocupação na sociedade exterior. Ora, como afirma Federici, sem o labor doméstico, de dentro de casa, não há os demais trabalhos… Em um mundo fundamentalmente capitalista e patriarcal, é preciso assegurar aos homens sua plena disponibilidade ao capital (numa estratégia em que a extrema pobreza e o desemprego se entrelaçam). O trabalho, claro, é a base do patriarcado e o que funda a sociedade capitalista.
Como amenizar a situação? Como superá-la? Como torná-la apenas uma lembrança dos tempos de opressão? Penso que a única alternativa seja a educação. Não uma educação terceirizada, deixada para a escola – um ambiente que já está abarrotado de pessoas entre conservadoras e alienadas, cansadas e desmotivadas. Mas sim por meio de um empenho ostensivo de grande parte da sociedade. Deve-se combater, sobretudo, o machismo e a violência contra a mulher, que a coloca em uma condição subalterna, fragilizada e vulnerável. A reação exagerada e ignorante que ouvi na segunda feira após o ENEM demonstra como homens e mulheres no Brasil do século XXI ainda consideram a mulher um ser menor, da qual não se deve falar e cujas necessidades mais básicas devem ser silenciadas, sufocadas. O desprezo pela mulher é parte de um projeto, qual seja, capitalista, conservador e fundamentalista da realidade social. Eu digo: basta!
Referências
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e a acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017 [2004]
Notas
[1] “O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”. Entrevista com Silvia Federei, ver em: https://www.geledes.org.br/o-que-eles-chamam-de-amor-nos-chamamos-de-trabalho-nao-pago-diz-silvia-federici/
[2] FEDERICI, Silvia. “Eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não remunerado”. Consultar: https://www.youtube.com/watch?v=bFSI4nEB6jI
[3] FEDERICI, Silvia. “Eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não remunerado”. Consultar: https://www.youtube.com/watch?v=bFSI4nEB6jI
[4] Idem, ibidem.
(Ilustração de Capa: “Minha mãe e as mães do meu bairro”, de Anujath Sindhu Vinaylal, in: Revista Crescer).