Jesus na rodoviária – Uma crônica de Anum Costa
Nesta quarta-feira, dia 20 de março de 2024, em toda alegria, estreamos uma nova coluna em nossa revista: Voos para novos mundos, assinada pela pesquisadora em literaturas contemporânea anum costa. Anum é poeta cearense, desenhista, produtora cultural e revisora de textos. Publicou em antologias de poesia, contos e crônicas, além de facilitar oficinas/palestras sobre literatura, dissidências poéticas e escrita criativa. Em 2022, foi finalista do Prêmio Caio Fernando Abreu de Literatura com o livro Camboa: poesia e outros mistérios, publicado em 2023 na Coleção Pajubá pela Hecatombe, selo político da Editora Urutau (SP).
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jesus na rodoviária
[ uma crônica de anum costa ]
você aceita jesus como seu único salvador?, é a pergunta que chega de um desconhecido que se aproxima da gente
e temos opção ao nascermos?
ele repete a pergunta acrescida de um mas e estende um panfleto para mim, contendo três citações do apocalipse no verso
já conheço o papel
agradeço, mas prefiro economizar árvores
independente de religião, completa em mais um familiar esforço quando digo que me sinto melhor ao sentir o axé dos guias em minha travessia
ariana de palavras enxutas, minha irmã caçula recebe o panfleto e não diz nada com a boca, mas olha como quem sabe de mim, me dizendo bem mais
ele insiste, como bom recrutador de almas que é, e eu digo que jesus era uma pessoa massa e seus seguidores já não caminham mais sobre a terra e que usam seu nome para matar
antevejo mais um jorro de palavras da boca deste homem cada vez mais alheio, no entanto estou eu lançando-lhe um olhar que é o verdadeiro sortilégio, espraguejo uma coisa assustadora de tão boa em cada galáxia das minhas íris âmbar
estancada enfim sua boca, afinal são tempos de guerra, não falei mais até que ele desistiu de me invadir e partiu
a caçula então fez do panfleto um tsuru bem pequeno, bonito mesmo, deixou-o sobre o banco da rodoviária, certamente um presente para mais viajantes
compro café para pacificar a sensação de minha fé quase comprada, peço uma água como um ritual de toda rodoviária, abraço a irmã mais melhor amiga do mundo, sinto o amor que vem de seus dedos ao tocarem minhas costas, destilo uma piada capricorniana bem trágica, porque é assim que lido com as censuras que inundam nossos brasis, ela então dá uma gaitada familiar e um boyzinho próximo também quer sorrir mas se detém
talvez tenha ele lido a frase de minha camiseta
~ lute como uma travesti
pego o ônibus que atrasou uma hora inteira
sigo viagem, sigo em trânsito
jesus teria amado a camisa
começo a ler o parque das irmãs magníficas, imensidão poética da camila sosa villada, que me remete à epígrafe feita por maria valéria rezende para e se eu fosse puta, da amara moira, que diz algo como
~ e, amará, não se esqueça disso, é jesus quem diz: “as prostitutas vos precederão no reino de deus” ~ mateus 21:31
quão incompreendidas ainda permanecem as travestis, as prostitutas e jesus